Aviso: este capítulo traz água no bico.
Livros na Bagagem. Capítulo 6.
Sabiam que, bem no meio de Lisboa, há uma rua em que se conduz à inglesa, ou seja, pela esquerda?
Ora, antes de revelar qual é a tal rua muito British, deixem-me dizer-vos que, em Portugal, já se conduziu pela esquerda.
Só no dia 1 de Junho de 1928 passámos todos a conduzir pela direita… Todos, quer dizer: as poucas pessoas que tinham carro na altura…
Encontrei, no blogue Luar de Janeiro, esta imagem muito curiosa, do Diário de Notícias da altura:
Nós, pela metrópole, passámos a andar pela direita, mas houve colónias que se mantiveram à esquerda: Goa, Macau e Moçambique. Ainda hoje Macau conduz pela esquerda, mas o resto da China conduz pela direita.
Ora, como já vos disse há uns tempos, até gosto de conduzir pela esquerda: dá-me a sensação que estou a aprender a conduzir de novo. Foi estranhíssimo pegar num carro inglês pela primeira vez. Por outro lado, não é tão difícil como pensava antes de tentar.
Bem, adiante. Qual é então a rua lisboeta onde se conduz pela esquerda?
É a Rua Viriato, ali na zona de Picoas. Reparem:
Quase ninguém repara porque, para todos os efeitos, a rua funciona como duas ruas de sentido único. Mas, de facto, neste ponto de Lisboa, os carros seguem pela esquerda.
É estranho e não perguntem porque ficou assim. Terá a ver com a configuração das ruas na zona.
Ora, ando a escrever esta série de artigos sobre livros na bagagem e ainda não expliquei o que tem esta história da rua inglesa no meio de Lisboa a ver com livros. É aqui que entra a água no bico deste capítulo.
Acho que já deu para perceber que gosto muito de livros. Todos os livros que leio ou que compro são, de certa maneira, meus, mas espero que me perdoem se vos disser que vou passar a ter um canto especial no meu coração de leitor para o primeiro livro que escrevi: Doze Segredos da Língua Portuguesa.
Ora, se olharem de novo ali para a imagem da rua, o prédio à direita é o Picoas Plaza, onde existe uma livraria Bertrand. Será aí o lançamento do livro, na próxima quinta-feira, às 18h30, na Bertrand Picoas Plaza. Será apresentado por Fernando Venâncio, que também escreveu o prefácio. Aproveito para dizer que foi editado pela Guerra & Paz, de Manuel S. Fonseca, foi revisto por Helder Guégués e a capa é de Ilídio J. B. Vasco. Muito obrigado a todos eles pelo cuidado na edição do livro.
Já agora, aceitem o convite e partilhem o evento no Facebook.
Bem, mas não quero que este capítulo fique demasiado egocêntrico.
Assim, já que falamos de ruas de Lisboa e das suas particularidades, fiquem com este livro, que levei na bagagem há muitos anos:
Lisboa, Livro de Bordo, de José Cardoso Pires.
É um lindo livro, este. Mas nem é exactamente por isso que o ponho aqui. Fiz, já há uns 13 anos, um trabalho sobre o Incêndio do Chiado e este pequeníssimo livro foi um dos actores principais. Além disso, foi editado por altura da Expo, que marcou a minha ida para Lisboa, e por isso, para mim, é como se fosse uma espécie de baptismo lisboeta em forma de literatura. E acompanhou-me nos meus encantos muito particulares, que incluem as estações de metro, o olhar para o chão, o ouvir a cidade e o adorar estar num sítio destes, que os portugueses (quase) todos adoram detestar, mas que eu não posso viver sem. (A sintaxe da frase anterior é como a Rua Viriato: um pedaço inglês no meio de Lisboa.)
Ora, o livro também me faz lembrar o estar a ler na Biblioteca Nacional, à espera dos livros que vinham trazidos por senhoras de carrinho desengonçado, de estar a ler jornais na Hemeroteca Municipal, de ler notícias de jornais do século XIX para outro trabalho que fiz na altura, de visitar o Centro de Estudos Sociais para mais umas investigações, centro esse que fica precisamente no Picoas Plaza, na rua onde os carros andam do lado contrário…
O que tem isto a ver com José Cardoso Pires e o seu Livro de Bordo? Pouco, mas isto são livros da minha vida, e a minha vida mistura-se com os livros de formas imprevisíveis.
Saía da Biblioteca Nacional e estava sol em Lisboa e por essa altura vivia aqueles anos que todos nós temos em que as coisas acontecem em catadupa, em que parece que a nossa vida dava um livro ou um filme ou ambos, no fundo estava a sentir aquilo que o Carlos (o da Maia) sentiu quando disse isto, lá para o fim d’Os Maias:
Sim, por esses anos os dias e as noites pareciam mais marcadas, andava por Lisboa, no carro que arranjara pouco tempo antes e que até tinha alcunha, onde aconteceu tanta coisa, por onde discutia tudo e nada com esses amigos que ficam marcados como que a ferro e brasa num dos capítulos do livro que nunca hei-de escrever, mas que me é mais importante do que os outros todos, um livro onde as personagens têm os nomes das pessoas todas da minha vida. Um livro onde nunca poderia haver um narrador omnisciente, porque isso seria o contrário da vida, não é verdade?
Agora uma confissão: não escrevi esse livro exacto, mas deixei umas quantas memórias no tal Doze Segredos da Língua Portuguesa, incluindo a exacta citação do Eça que deixei acima.
Lembro-me ainda de ter encontrado o Livro de Bordo, numa Fnac de Lisboa, traduzido para… catalão. Por que razão a Fnac vendia em Lisboa a tradução catalã do livro? Não faço ideia. Mas quase que aposto que alguém não soube distinguir o catalão do espanhol ao fazer as encomendas do mês.
Comprei-o e enviei-o ao Ricard, um amigo catalão com quem conversava sobre muita coisa e a quem gostava de oferecer um guia para a minha cidade, já que a dele já me corria pelo sangue e ele até me tinha oferecido um livro uns anos antes. Foi assim que enviei pelo correio o Lisboa, llibre de bord: veus, mirades, records.
Uma cidade como Lisboa é assim: existe em várias línguas, e é feita de pessoas e de pedras, mas também de livros e literatura — e ainda ruas inglesas escondidas ali pelo meio, como um segredo.