Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Uma vírgula de Saramago na nossa cama

(A fonte da foto é este site.)

Já que estou em blogue alheio, convém dizer que me chamo Rita. E fui com o meu novo namorado passar um fim-de-semana de Natal para outras paragens que não a consoada e prendas e putos e outros cansaços.

Sim, sou assim, o que querem? Os meus pais não se importam e eu muito menos. Já o Daniel, coitado, teve de suar muito para justificar aos pais a ausência na mesa de Natal, mas também sei que não ia perder a oportunidade de passar três dias comigo numa casa perdida lá no meio da Serra da Estrela. Uma cama, uma banheira no quarto e muita neve a impedir-nos de sair de lá. Namoramos há menos de três meses: não há quem resista.

Ora, chegámos, estacionámos, percorremos os poucos metros do carro à casa com as malas na mão, a neve a atrapalhar-nos os movimentos, o cansaço da viagem de cinco horas no corpo. Abrimos a porta, ficámos de boca aberta: era o que queríamos, só que melhor ainda. Nem despimos o casaco e já estávamos embrulhados na cama a rir e depois o que se sabe. Uma bela consoada antecipada — ainda eram seis da tarde.

Bem, pouco depois, a lareira acesa, a neve a cair lá fora, dois copos de champanhe na mão, os lençóis espalhados e nós nus a conversar, começou a dar-nos uma moleza natalícia e ele pôs-se a ler o Facebook. Decidi levantar-me para ir buscar qualquer coisa para ler.

— Raios, esqueci-me do livro…

— Qual livro?

— O livro que estou a ler: O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Como é Natal…

Ele não se riu e tive aí o primeiro pressentimento de que alguma coisa podia correr mal. O que ele fez foi puxar-me para ele e dizer, bem-disposto, que nunca lera o Saramago e também não era agora que ia começar — porquê? Porque se recusava a ler escritores que não usam bem a pontuação.

Eu travei de imediato, a meio caminho do colo dele.

— Explica lá isso melhor…

Não me digas, pensei eu para comigo, que este mânfio é daqueles que acha que o Saramago não usava pontuação.

— Então, é o que todos sabemos: o Saramago não usava vírgulas. E elas estão lá para ser usadas! Nunca gostei dessa ideia de os escritores mandarem às malvas as regras do português…

Fiquei em choque e comecei a vestir-me de imediato. Fui dizendo enquanto abotoava a camisa:

— Tu achas mesmo que o Saramago não usava vírgulas?

Ele riu-se:

— Claro! Toda a gente sabe! Ele é conhecido por isso mesmo! Mas estás a vestir-te porquê?

— Não, não é conhecido por isso mesmo. É conhecido por ter sido um dos melhores escritores do século passado. Vou repetir devagarinho… — disse eu enquanto vestia as calças. — O Saramago não usava vírgulas?

— Claro que não!

— Mas tu já abriste algum livro dele?

— Sim, na escola, o Memorial do Convento ou lá o que era… Não havia lá vírgulas, pelo menos na minha edição.

— Olha, posso dizer-te que já li os livros todos dele e sempre encontrei muitas vírgulas e muitos pontos…

— Não inventes! Queres agora convencer-me que o Saramago usava vírgulas? É que toda a gente sabe…

— Lá estás tu e o «toda a gente». Então tu abriste o Memorial durante dois minutos na Secundária e achas que eu, que estou neste momento a ler um livro do homem, não reparei que ele não usa vírgulas? É isso?

— Pois não sei, se calhar não viste bem. É que toda a gente sabe que ele não usa vírgulas!

— Toda a gente sabe o car****!

Ele ficou embatucado. Tentou aproximar-se, amaciar-me com palavras com muitas reticências, mas eu não estava para aí virada. Comecei à procura da chave do carro.

— Aonde vais, amor?

— Vou a casa buscar o livro para te mostrar as vírgulas do Saramago.

— A tua casa? Em Évora?

— Sim, claro, é onde está o livro.

— E eu?

— Podes ficar à espera, se quiseres. Diverte-te muito, tens aí a banheira, a cama, a lareira…

— Vais estragar o Natal por causa duma vírgula?

— Sim — e abri a porta onde se via muita neve e muito frio.

— Ouve, tudo bem, se tu dizes que há vírgulas nos livros de Saramago, eu acredito!

Olhei para ele e olhei para a neve. Apetecia-me muito dar-lhe uma lição. Mas também me apetecia muito estar à lareira. Suspirei, virei-me para ele, e disse:

— Muito bem, mas então faz o seguinte: compra aí um livro de Saramago para o iPhone para eu te espetar a vírgula na cara, pode ser?

— Ficas cá se eu fizer isso?

— Sim.

O rapaz correu para o telemóvel e desatou à procura. Encontrou e descarregou, enquanto murmurava «só me faltava passar o Natal a comprar livros de Saramago». Eu fiz-lhe olhos maus, peguei no telemóvel, abri na primeira página e enfiei-lhe o ecrã nos olhos:

— Estás a ver as vírgulas ou não?

— Sim, estou. Mas se calhar é desta edição. Puseram as vírgulas depois.

— Mau, queres que eu vá mesmo a Évora e ficas a chuchar no dedo?

— Não, não… Mas deixa lá ver outro.

Descarregou O Ano da Morte de Ricardo Reis, folheou o ecrã e a certa altura encontrou uma coisa que lhe deixou um sorriso na cara:

— Estás a ver: que história é esta de maiúscula a seguir a uma vírgula?

— Ora, meu caro, isso são questões de estilo. É só uma pequena adaptação das convenções ortográficas para sublinhar a oralidade do relato…

— Estilo? Estilo? É por estas e por outras que odeio o Saramago…

— Odeias o Saramago? Mas porquê? Por causa das maiúsculas a seguir às vírgulas?

— Não: por não respeitar as regras do português, por exemplo.

Eu abri muito os olhos:

— Ora, pedir para os escritores seguirem estas convenções do diálogo é o mesmo que obrigar o Picasso a ir à Câmara Municipal perguntar quais são os tipos de tinta autorizados para os seus quadros…

— Mau! Mas então achas que as regras da língua são como as regras camarárias?

— E tu achas mesmo que isso são as regras de português que realmente importam? Saramago sabia muito bem as regras da língua e podia dar-lhes a volta exactamente porque as conhecia de trás para a frente.

— Conversa da treta. Irrita-me essa mania dos escritores de fazerem o que querem com a língua!

— Pois, isso é verdade: os escritores fazem o que querem com a língua. Pelo menos os bons.

Calámo-nos então e fizemos, o resto da noite, o que quisemos.

[Histórias]

RECEBA OS PRÓXIMOS ARTIGOS
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

Comentar

25 comentários
  • Saramago até poderia usar vírgulas, uma anteontem, outra daqui a três dias, o que ele nunca usou foi bom Português.
    Estou certo de que ele só ganhou um prémio Nobel, por ser iberista espanhol, antipatriótico e defensor da desconstrução da Língua Portuguesa.

  • Eu não gosto do Saramago como pessoa, com vírgulas ou sem vírgulas.
    Mas também não iria permitir que ele se metesse na minha cama com a minha namorada.

  • Muito bom!
    Mas estou solidária com o Daniel : também não gosto de Saramago, pelas mesmas e outras razões. Reconheço a sua genialidade, mas não quero as suas vírgulas , ou a falta delas, na minha cama.

  • Obrigado a todos pelos comentários. Mas que fique claro: Saramago usava vírgulas — e não eram poucas! 🙂

  • Olá a todos;
    Saramago não usava vírgulas – é o que toda a gente sabe…

    Saramago usava vírgulas é o que pouca gente sabe…

    Adorei o relato e como grande fã do Saramago, afirmo, ele usava vírgulas.

    Boas entradas a Todos.

  • Com mais um menos vírgulas Saramago é um grande escritor, apreciado por gregos e troianos, quer se goste ou não.
    Porque somos tão críticos ( e injustos) com os nossos que se destacam e levam longe o nome de Portugal e da nossa língua?

  • Adoro o Saramago, com ou sem vírgulas! E, como você mesmo disse, vírgula é o que não falta na obra dele!

    ótimo texto, obrigada! 🙂

  • Sou fã de Saramago, o escritor. A pessoa do dia-a-aia não tive o prazer de conhecer. Acho espantosa essa polémica das vírgulas. Eu devoro os livros dele, e de outros, e fico tão embrenhada no conteúdo que não me lembro das vírgulas, nem do resto da pontuação. Calculo que deve ter pontuação, mesmo que sem pontuação de vez em quando, porque me lembro muito bem de ao ler lhe dar na minha cabeça entoação.

  • Não se trata de ignorância, senhores. No que me toca, eu conheço a obra de Saramago, até porque, pasme-se, tive que a ensinar durante anos, apesar da minha vontade. E fui isenta do meu gosto pessoal. Distanciei-me, como era meu dever, e enfrentei-o com imparcialidade e , apenas, sentido analítico literário. No entanto, agora que estou livre de expressar a minha opinião, continuo a dizer “não gosto”! Não gosto daquilo a que os bem intencionados e parciais apreciadores chamam ” estilo” . Sim, será o ” seu estilo” ignorar as mais elementares regras gramaticais das concordâncias, dos contextos, a ponto de colocar profusamente vírgulas a esmo, algumas vezes ” out of the box” . Ok, estilo , já sei! É , de facto o seu estilo e, como tal, até o consigo apreciar aqui e ali, mas não mais além … Desrespeitou , deliberadamente, as regras do Português de Portugal e utilizou um estilo ” salada sovieto-espânico-burgocomuna” que , tal como se entrelê, nem é carne , nem é peixe. Esta é a sua Forma.
    Quanto ao Conteúdo, aí, sim, é genial . A imaginação, a criatividade, o simbolismo…genial ! “A jangada de pedra” é disso um exemplo.
    Mas concordo em absoluto com alguém que disse num dos comentários, fosse ele português de Portugal, a viver em Portugal, não casado com uma influente jornalista espanhola e o Nobel dificilmente lhe seria atribuído …só o foi porque julgavam tratar-se de um escritor espanhol…o que também não abona NADA em favor dos critérios de escolha destes , digamos…grosseiramente…”concursos” ! É como o “outro” que recebeu este ano o Nobel … o tal…o Bob . Que até é um grande músico e autor de intervenção. Mas , fiel a si próprio, teve o bom senso de se ” marimbar” para aquilo!

  • Caro Marco Neves,
    Parabéns! Gostei muito do texto! Estava a ver que as vírgulas de Saramago estragavam uma original noite de Natal!
    Também eu gosto muito de Saramago. Não sou escritor. Sou um Leitor.
    Para mim, o Ensaio sobre a Cegueira é um melhores livros dele.
    Há quem não goste de Saramago porque não gosta e terá razões para não gostar. Há quem não goste, não por o ter lido, mas porque lhe disseram que era comunista… Há quem goste porque gosta. Sem preconceitos. E há quem goste de Saramago como gosta de outros escritores, sem se preocupar com a biografia dele, por ser português, por ser o nosso Nobel de literatura, por ser de direita ou de esquerda, etc. Apenas porque gosta dos livros dele.
    Há por aí muita gente que me pergunta, Tu lês a Agustina? Essa gaja era apoiante do Cavaco… Outros perguntam, Tu lês o Saramago? Esse gajo é comunista e ateu… Cegueiras há muitas. Não podemos fazer nada!
    Quanto à questão das vírgulas – devemos a Saramago algumas das mais belas páginas de Língua Portuguesa –, proponho a leitura de outros escritores. O mais referido é o António Lobo Antunes. Mas há outros. Essa história das vírgulas é uma questão de lana caprina! Devíamos falar de literatura.

  • A “sotôra” Teresa pode desgostar de quem quiser, assiste-lhe o direito. Não posso aceitar que a “sotôra” Teresa queira impingir a ideia de que, o juri dos Nobel, sejam todos acéfalos e nem saibam quem é Saramago ou Lobo Antunes 🙂
    Vá… não seja radical livre, de direita rs

  • Bem, essa dos membros do júri pensarem que o Saramago era espanhol, é digna de qualquer carroceiro, mas não de uma Sra. professora. A Sra. não sabe que a obra de Saramago está publicada em várias línguas? Bem, isto da ideologia comandar as nossas opiniões pessoais é mesmo muito ridículo. Se não é isso, peço desculpa, mas é o que parece. E para a tranquilizar, vou citar o escritos num pensamento seu que acho genial: ” não há partidos de direita nem de esquerda. O que há, é uma cambada de salafrários, e a única diferença entre eles é a mão com que roubam”.

Certas Palavras

Arquivo

Blogs do Ano - Nomeado Política, Educação e Economia