Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Como é que o Uri Geller põe os relógios a funcionar?

Não vi o programa, mas parece que o Uri Geller andou a arranjar relógios na RTP, no programa do Luís de Matos, para espanto de muitos espectadores — algumas pessoas contam nas redes sociais como viram com os seus próprios olhos um relógio avariado (que tinham lá para casa) a começar a dar horas.

Como é possível? Não vou ser eu a revelar o segredo. Mas não sonhe o leitor com explicações sobrenaturais. É tudo uma questão de… matemática!

Uma pista: não é impossível, mas é muito improvável que eu morra de acidente de carro durante o dia de hoje. Por outro lado, é muito, mas mesmo muito provável que algum português morra hoje de acidente de carro durante o dia de hoje. É uma infelicidade, claro: mas é provável.

Da mesma forma, é muitíssimo improvável que o meu caro leitor ganhe o Euromilhões. Mas já será bem provável que alguém ganhe o prémio.

Ainda não percebeu a ligação entre estes factos banais e os relógios de Uri Geller? Pois poderá encontrar a explicação escarrapachada neste livro, que li há uns meses: How Not To Be Wrong, de Jordan Ellenberg. A tradução portuguesa é da Marcador: Como Não Errar. É um livro sobre matemática, mas pensado para ser lido com prazer e proveito por todos nós, por menos matemáticos que sejam os nossos espíritos. É um livro útil e a leitura é um prazer.

No livro, o autor fala mesmo de Uri Geller e dos relógios. O mistério desvanece-se, mas o encanto nem por isso. Ficamos espantados com o mundo e com os números que nos rodeiam.

(Ah, e fica o aviso: o livro também mostra como o mesmo mecanismo por trás da ilusão de Uri Geller também pode servir de base para fraudes muito bem pensadas. É uma leitura aconselhada a todos os curiosos — e a todos aqueles que não gostam de ser enganados.)

Somos todos descendentes de Afonso Henriques?

Já tinha recomendado o livro de Ellenberg num artigo do Sapo 24: «Somos todos descendentes de Afonso Henriques» — até isso a matemática nos ensina (se o leitor ler até ao fim, encontrará mais uma recomendação de leitura matemática, desta vez dum livro português):

«Em Inglaterra, está agora na moda encontrar ascendentes históricos de gente famosa — e as pessoas assim premiadas com um avoengo espampanante ficam muito orgulhosas. Ah, afinal são gente não só famosa, mas também de pergaminhos antigos.

Ainda em 2015, alguém descobriu que Benedict Cumberbatch era descendente de Ricardo III, o rei que o actor iria representar numa série de televisão. Não sei o que Cumberbatch pensou do caso, mas muita gente ficou pasmada com a coincidência.

Só que não era coincidência: na verdade, o mais provável é eu próprio, aqui neste canto da Europa, ser também descendente de Ricardo III. Eu — e o meu caro leitor. Somos todos!

E também somos todos descendentes de Afonso Henriques (sim!). E de Maomé (ah, pois é!). E só não seremos descendentes de Jesus porque dizem que não teve descendentes.

Como é isto possível? Bem, pensemos ao contrário: tenho dois pais, quatro avós, oito bisavós… Se continuarmos por mais umas quantas gerações em direcção ao passado, chegaremos rapidamente a números impossíveis — o que significa que somos todos primos uns dos outros, de forma bem mais imbricada do que imaginam os defensores de certas ideias de pureza dinástica.

As contas são um pouco mais difíceis do que possa parecer, ao lermos o parágrafo anterior. O leitor pode ver a explicação mais desenvolvida neste pequeno artigo — mas se quer que lhe diga, bem mais interessante será ler o pequeno livro chamado O Mistério do Bilhete de Identidade, de Jorge Buescu. Perceberá que é descendente até dos faraós — e aproveita para ficar a conhecer um livro muito simpático.»

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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