Desde que o meu irmão foi viver para Inglaterra, às vezes lá vamos nós visitá-lo — e aproveitamos para passear.
Numa dessas viagens, há uns cinco anos, ainda sem filhos, decidimos ir de Cambridge até ao País de Gales. Lá fui eu, o meu irmão, a Zélia e a Sofia.
Saímos de manhã, prontos para ir almoçar a Cardiff — e perdemo-nos.
Andámos entre aldeias inglesas que ninguém conhece, estradas onde nunca um carro parece ter passado, auto-estradas que iam para todo o lado menos para Gales — enfim, um delicioso labirinto britânico, que nos libertou, por fim, ao fim da tarde, a tempo de jantar em Cardiff. Acabámos por decidir lá ficar de noite.
Por esses dias, o meu irmão ainda andava a descobrir o mundo mental inglês e passou-me a viagem a descrever os estereótipos sobre os galeses: na mente de muitos ingleses, o vizinho pequenito é um canto cheio de gente obcecada com vacas.
Ri-me desses simplismos — e, claro, Cardiff é uma cidade que desmente essas ideias inglesas sobre o país.
O problema é que, fosse eu inglês preconceituoso, teria visto as minhas ideias confirmadíssimas quando cheguei ao hotel.
Porquê?
Ora, quando cheguei ao quarto, liguei a televisão ávido de encontrar a televisão local, para ouvir um pouco a língua galesa. Finalmente lá encontrei o tal canal: canal esse em que estava a dar um programa apresentado por um homem de suíças gigantescas, que discutia em galês qualquer coisa relacionada com… vacas! Pois que apontava e ria e discutia entusiasmado o que devia ser o mundo das vacas, pois estava rodeado dessas simpáticas criaturas.
Fiquei em choque e o meu irmão a rir às gargalhadas.
Logo a seguir deu um programa sobre poetas galeses, sem vacas à vista, e eu sorri um pouco. Dizem que aquele é um país de poetas. Será também um simplismo? Enfim, simplismos há em todo o lado, como sabemos — e têm sempre aquele fundo de verdade de que se alimentam as mentiras que contamos sobre os outros.
O certo é que, com vacas ou não, não percebi patavina do que diziam os tais galeses. A língua é exótica aos ouvidos portugueses.
Diga-se que, na rua, como sabemos, o que se ouve em Cardiff é inglês. O galês já se ouve pouco nas cidades, embora nos rodeie nas placas das ruas, nas estradas e nalguns livros nas montras das livrarias.
Aproveitei para comprar um livro sobre a situação social da língua (uns é com vacas, outros é com línguas, cada um na sua). Pus-me a ler. Descobri alguns aspectos curiosos da língua galesa: vivendo lado a lado com o inglês, quem protege a norma do galês tenta afastar a língua o mais possível do vizinho poderoso.
Assim, o galês, uma das línguas do Reino Unido, está estranhamente livre de anglicismos…
Repare-se, assim, na palavra para futebol em várias línguas:
- Inglês: football
- Português: futebol
- Alemão: Fußball
- Dinamarquês: fodbold (!)
- Basco: futbol
- Neerlandês: voetbal (esta foi-me oferecida por Fernando Venâncio, que me disse ainda que «oe» soa a «u»)
- Francês: football
- Galês: pêl-droed
Sim: na quarta a nossa selecção vai jogar uma boa partida de PÊL-DROED com os nossos amigos de Cymru.
Querem mais estranhos exemplos de palavras em que os galeses resistiram aos anglicismos? “Internet”, em galês, traduz-se por “rhyngrwyd“. E computador? “Cyfrifiadur“.
Sim, naquele país, até os termos informáticos parecem saídos da boca do Rei Artur.
Li atentamente e ri-me um bocadinho, mas o estereótipo à seria não será relacionado com vacas mas sim com ovelhas. Quem nunca ouviu a piada parva: “why do the Welsh have two holes on the toe caps of their wellies?” … há quem diga que é para a ovelha não fugir!,
Fica a nota parva é o comentário semi-racista de quem passou por terras alheias.
Antônio de Castro Lopes bem que tentou substituir futebol por ludopédio, mas cardápio foi a única das suas muitas invenções que vingou. Coocorre com menu e é até mais frequente que o galicismo, no Brasil.
Eu não sei muito o que achar dessas iniciativas. Se me parecem ridículas, vistas à distância de décadas, sei que não mo pareceriam se tivessem vingado, tal como cardápio, que sai da minha boca tão naturalmente quanto futebol.
Outras línguas que usam termo próprio para computador: húngaro – számítógép, turco – bilgisayar, finlandês – tietokone, checo/eslovaco počítač.
Uma língua com termo próprio em uso para futebol: kopaná em checo, mas futbal é mais usado. E não nos esqueçamos do calcio italiano, relacionado com o coice português.
Nós podemos usar tranquilamente computador, de pura cepa latina.
Fiquei mesmo com vontade de ir ao Youtube e procurar vídeos onde possa ouvir alguém a falar galês.
Rodrigo: O que referiu acerca de Antônio de Castro Lopes (pelo acento circunflexo na letra ‘o’, suponho que tenha sido brasileiro?) parece-me ser uma ideia mesmo muto interessante.
Estou num dispositivo móvel e por isso não me é possível ir já fazer a respetiva pesquisa, mas assim que ‘assentar poiso’, irei logo satisfazer a curiosidade…
Obrigado.
Caro Vítor,
Sim, era brasileiro. Inventou também ludâmbulo (turista), ancenúbio (nuance), convescote (piquenique), lucivelo (abajur), castelete (chalé) etc.
Encontra aqui um pequeno texto sobre ele, redigido por um jornalista e escritor brasileiro: http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/curiosidades-etimologicas/convescote-nao-tem-cardapio
O tom é jocoso, como verá. Tenho mais respeito por Castro Lopes e penso que, se é verdade que o tempo lava os estrangeirismos, é também verdade que a resistência tempestiva impede a sua fixação, como o prova chamarem os portugueses rato ao que chamamos mouse.
Algum português acha ridículo dizer rato em vez de mouse? Não, acham-no normal, como também o acharíamos os brasileiros se houvéssemos oposto resistência ao anglicismo na hora certa.
Eu, como o Marco, tenho uma visão mais arejada da língua, mas vejo com alguma reserva a ideia de que o uso faça a norma: professores podem impedir a normalização de barbarismos facilmente substituíveis, se houver concerto de esforços para isto.
Muito obrigado pelo excelente comentário! Em relação ao que diz no fim, sim, concordo: podemos intervir na língua no que toca ao que nos aparece de novo (embora nunca haja garantias de que determinada palavra “pegue”). O que não me parece frutífero é lutar contra aquilo que já se impôs, que já é transmitido a novas gerações. Ou seja, podendo optar, opto por “rato” (e julgo que os professores têm, de facto, uma função importantíssima neste ponto). Felizmente, foi o que fizemos por cá e ninguém diz “mouse”. Mas quando já não há opção (por exemplo, “futebol” ou “dossier”), parece-me que não vale a pena andar a batalhar para recuperar palavras próprias. (Mas, e porque gosto de complicar, há estrangeirismo que pegam e, depois, desaparecem, como “corner” e “offside”.)