Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Slash solou» é erro de português? E «míster», no futebol?

Confesso já aqui: não estou habituado a ler o verbo «solar» com o significado de «fazer um solo». Mas a verdade é que, lendo este título do Público, percebo o que tal palavra significa: «Axl cantou, Slash solou, os Guns N’Roses voltaram a sério».

Pois, claro, um leitor mais alarmado com as malucas das palavras que saltam categorias foi-se queixar para o Facebook (onde haveria de ser?): não, não! A palavra não existe! Só podemos dizer «executar um solo»! Porquê? Porque é uma palavra brasileira, porque não se usa no Conservatório de Lisboa, porque isto e porque aquilo.

Ora, não sei se é palavra brasileira. Como informaram alguns comentadores em resposta à tal queixa publicada no Observatório da Asneira, a palavra já se usa há muito tempo na imprensa musical — e, enfim, segue as regras do português no que toca à sua formação.

Teresa Coutinho, com infinita paciência, chegou a colar uma fotografia do Dicionário Morais com a palavra lá escarrapachada. Sim, é usada (também) no Brasil — o que não é de espantar. Talvez tenha sido inventada no Brasil e em Portugal de forma independente. Afinal, na nossa língua, se temos um substantivo e queremos transformá-lo em verbo, o que fazemos é integrá-lo na primeira conjugação. «Solo» > «solar». «Telefone» > «telefonar», etc.

Se, por outro lado, os portugueses se lembraram desta palavra por a ouvirem da boca dum brasileiro há umas quantas décadas — enfim, não vem mal ao mundo. Tanto quanto sei, até pode ter sido ao contrário. (Diga-se que isto não permite tudo: há muitos verbos que seriam possíveis, mas que não se usam. Ninguém diz «microfonar» para «falar ao microfone». Porquê? Mistérios insondáveis da língua — ou melhor, resultado inevitável da imprevisibilidade dos sistemas complexos.)

Portanto, muitos usam «solar» como verbo em contexto musical. Depois, temos o jornalista do Público que o faz num artigo que parece isento de erros graves. Logo, devíamos dar o benefício da dúvida: se eu não conheço a palavra, se calhar é porque eu não conheço a palavra — afinal, quando nascemos, não conhecemos nenhuma palavra. Como se diz por aí, estamos sempre a aprender. Só não aprende quem acha que uma palavra desconhecida é sempre erro…

Mas nada disto convenceu o queixoso. Afinal, se já temos «executar um solo», não podemos aceitar esse verbo estranho: «solar». Até porque, como acrescentou outro alarmista, o verbo solar já quer dizer «pôr solas em sapatos». Logo, o jornalista devia ter evitado a palavra para não criar confusões.

Exacto, há mesmo pessoas que, perante a notícia acima, ficam com medo que alguém acredite que Slash foi arranjar sapatos para cima do palco.

Já sei: há maluqueiras para todos os gostos no Facebook. Nem vale a pena perder tempo com estas ideias tontas. Mas este episódio em particular ajuda a perceber dois princípios fundamentais do discurso simplista sobre a língua:

  • Princípio n.º 1: «Vivo rodeado de estúpidos. Eu não sou estúpido. Se alguém diz uma palavra que eu não conheço, tendo em conta que eu não sou estúpido, mas os outros tendem a sê-lo, a palavra só pode estar errada.»
  • Princípio n.º 2: «Ouvi a palavra Y que quer dizer X. Ora, eu já conhecia outra palavra com o mesmo significado. Logo, a palavra Y só pode estar errada. Além disso, se a palavra Y tem um significado, nunca pode ter outro. A cada palavra, um só significado, se faz favor, que eu não tenho tempo para estas confusões.»

Estes dois princípios norteiam muitas das acusações desabridas e simplistas sobre o português dos outros. Mas, para dizer a verdade, o debate sobre o Slash que solou até foi muito cortês. Todos nós nos enganamos e todos nós podemos tentar corrigir os erros dos outros com respeito e sensatez.

O problema é que os dois princípios acima são salpicados, o mais das vezes, pelo chamado «descontrolo verbal». Se vejo um erro de português — falso ou verdadeiro —, posso dizer o que me apetecer porque estou defender a Santa Madre Língua. Só assim se explica que, numa outra posta de Facebook sobre o uso da palavra «míster» para designar informalmente um treinador, alguém tenha dito que aqueles que tal dizem «são uns cretinos ignorantes!!!». Ah, o peso daqueles três pontos de exclamação. O cretino ignorante até fica calado, não vá dar-se o caso de o justiceiro lhe atirar com um quarto — quiçá um quinto! — ponto de exclamação.

Repare o leitor, já agora: quem usa «míster» são jogadores e miúdos que praticam desporto. É um hábito linguístico com várias décadas. Talvez tenha vindo do inglês, talvez não. É uma palavra do registo informal, uma gíria desportiva — tão inócua que nem vale a pena pensarmos muito no caso. Ah, mas não, um miúdo a dar chutos na bola para ver se o mister fica contente é um «cretino ignorante».

Na verdade, este descontrolo verbal tão típico de muitas conversas de Facebook transmite uma imagem de pensamento descuidado e prejudica o falante — é um gravíssimo erro de português, este sim muito verdadeiro.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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15 comentários
  • Divertida a polémica. Estamos sempre a tempo de criar palavras novas ou de aceitar novos significados para uma já existente.
    Que tempo se perde em ataques vãos!
    O que acho de positivo nesta sanha contra os erros é que, por baixo do dedomapontado ao prevaricador, haverá talvez um grande amor e respeito pela nossa língua.
    Estarei a ser ingénua?
    Sei lá, mas apetecce-me usar lentes cor-de-rosa…

  • Nos meus tempos de infância e juventude “solar” (verbo) significava colocar solas (novas) nos sapatos, botas, etc… E por esse motivo também se dizia que “o bolo solou”, ou seja, o bolo ficou como sola, com consistência de sola de sapato… colocou-se a massa no forno para que o bolo cozesse e crescesse (um bolo pode crescer?? era assim que se dizia, não sei se ainda se diz, em linguagem técnica de pastelaria, ou na gíria, não sei…), mas ele apenas cozia, não crescia, e ficava tipo sola…

    • Aqui no Brasil também se usa o verbo solar para se referir ao bolo de consistência “emborrachada”. É aliás bastante comum ouvir a expressão. Já solar como fazer um solo musical, nunca ouvi…

  • A palavra “mister”, assim grafada, tem, segundo as normas ortográficas do português, o acento tónico na última sílaba, como acontece por exemplo com “colher” e com todos os verbos da segunda conjugação; se o acento tónico se situar na penúltima sílaba, como no inglês, trata-se de um estrangeirismo, pelo que se deve grafar em itálico ou entre aspas. Existe, no entanto, um aportuguesamento para esta palavra, já lexicalizado (isto é, constante de dicionários e vocabulários): míster.
    As questões da ortografia são, daquelas que têm a ver com a língua, as únicas que são normativas, ou seja, baseiam-se em normas, estabelecidas nos acordos e nos vocabulários ortográficos.

  • Referente à palavra “mister”, assim mesmo com acento em “ter” (aberto), é frequentemente usada no Brasil. Há nesta margem esquerda do Atlântico (Portugal à direita) também o uso informal de “mister” à inglesa (acento em mis) e com o mesmo sentido original. Pergunto a todos e em particular e com mais ênfase ao Anônimo Galego, se esta expressão brasileira (não sei se é usada em Portugal) “óxente” também é de procedência galega, já que pode muito bem corresponder ao português “Ó gente”.

    • Nunca escoitei “oxente” na Galiza. Nom faço a mais mínima ideia. Quiçais puido ter usada noutrora e passar ò Brasil por meio d´emigrantes galegos. Quem sabe… do único do que tenho certeza é issa expressom nom é usada na Galiza atualmente, ou usa-se moi pouco.

  • Como músico, já ouvi técnicos de som em estúdio e palco, a indicarem que “a bateria já está microfonada” ou “vou microfonar o tambor e os pratos.”

    Mais habitual ainda é ouvir “O amplificador da guitarra está micado” ou “a micagem do piano está mal feita.”

    Nas primeiras vezes, concordo que a coisa possa parecer uma aberração, mas depois, é como tudo na vida, começamos a nos habituar e porque ajuda a poupar tempo e palavras, não são muitos os que se queixam…

    Na verdade, acho que nunca poderia fazer sentido alguém referir-se à tarefa de cantar como “microfonar”, pois a ação segue no sentido da voz para o aparelho que capta o som, enquanto que a tarefa de posicionar os microfones diante dos instrumentos, segue no sentido dos microfones para os instrumentos.

    Presumo que por isso, nos fará mais sentido aceitar esse “novo” verbo. Posicionar microfones diante de um instrumento musical, será equivalente a “microfonar” o instrumento musical.

    Quanto à origem, não tenho grandes dúvidas de que a seja influência anglo-saxónica, pois os falantes de língua inglesa não têm problemas em transformar o ‘microphone’ numa espécie de abreviatura que se tornou verbo:
    “Mark, can you mic that drum, please?”

  • Bem, eu já uso o verbo “solar” há quase trinta anos. Provavelmente, é desconhecido na música erudita.

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Marco Neves

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