Faz este mês dois anos que apareceu nas livrarias o livro que mais gostei de escrever: A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Para comemorar o aniversário, publico aqui o prólogo do livro.
A nossa língua nasceu há muito tempo, numa região esquecida a um canto do Império Romano. Convido-vos a imaginar algumas das histórias de quem falou a língua ao longo dos séculos: uma celta e um romano aos beijos, um assassino galego em Toledo, uma ninfa do Mondego a ensinar um jogral a escrever, um amigo de Afonso Henriques à procura de mouras encantadas, Gil Vicente a perseguir um homem perigoso pelas ruas de Lisboa, uma coleccionadora de livros a fugir numa carroça para Amesterdão, Camões ao murro por causa duma dama da corte, uma lisboeta que cresce no meio do mar e morre no Grande Terramoto, grandes escritores a discutir à volta dum prato de amêijoas, dois poetas imaginários que encontram um galego a fugir duma guerra bem real e uma professora minhota que descobre a mais antiga gravação em português. Chegamos assim ao nosso tempo, com o português já espalhado por outros continentes, sem nunca ter abandonado esse rio Minho, ao redor do qual tudo começou. É uma história que todos pensamos conhecer, mas que guarda os seus deliciosos segredos…
Vozes escondidas num sótão do Minho
Antes de pegarmos na máquina do tempo que é a nossa imaginação, vou contar-vos o que a Sara, uma amiga que é professora de Português, me contou há uns dias. Todos os anos, a D. Guiomar, a avó dela, insiste em organizar um jantar de família. Todos resmungam, mas todos vão – e todos gostam.
Pois lá foi ela. Estou a vê-la a percorrer o país, pelas auto-estradas fora, em direcção a norte, para chegar à aldeia da infância, ali mesmo encostada à Galiza, bem lá no Alto Minho.
Já depois do Porto, enquanto segue pela A3, o ar condicionado do carro no máximo, o sol a enervar-lhe um pouco os olhos, vai pensando como já passaram tantos anos desde que saiu do Minho e foi viver para sul. Adora Lisboa, mas este canto do país ainda lhe deixa o coração a bater um pouco mais depressa.
Dentro da cabeça, vê passar as imagens de tudo o que lhe aconteceu no dia anterior. Foi o dia da peça de teatro dos alunos, aquela representação da farsa Quem Tem Farelos?, adaptada aos dias de hoje, que insiste em fazer todos os anos – e todos os anos acontece o mesmo: os alunos dizem que não gostam, que não querem, mas lá entram na brincadeira.
Este ano, no fim da peça, a turma deu-lhe um abraço colectivo. Sentiu-se felicíssima, com aquela saudade que lhe cai nos ombros no último dia de aulas.
O dia, apesar da tristeza do fim do ano, estava a ser lindo – mas descambou ao jantar. A Sara discutiu com o Rodrigo, o namorado. Tudo por causa de qualquer coisa que ela tinha escrito num blogue. Sim: num blogue. A discussão foi feia, digo-vos.
Bem, mas enquanto viajava para o Minho, ia repetindo baixinho os nomes das terras que via para se distrair e não pensar na discussão: Cervães, Rebordões, Rubiães… Os nomes das terras são bem diferentes dos do Sul. Soam mais escuros, mais nortenhos, mais graníticos. No Sul, a paisagem dos nomes é mais clara, mais árabe. Será apenas uma impressão que vem dos preconceitos que todos temos?
Sai da auto-estrada em Valença, mesmo antes da fronteira. Alguns quilómetros depois, ao entrar na pequena estrada municipal que há-de levá-la a casa da avó, começa a pensar naquilo que o Rodrigo lhe disse durante a discussão… Num susto, trava a fundo quando o carro da frente também trava, inesperadamente. O coração está aos saltos quando abre a porta para gritar com o condutor do outro carro. Mas não consegue, pois o homem desfaz-se em desculpas sinceras:
– Menina, desculpe, mas passou um coelho à minha frente. A menina está bem?
Ficou derretida com o sotaque. Bastou uma entoação do fundo da sua infância para a pôr bem-disposta.
Os nomes das terras, os sotaques das gentes: a paisagem também está nos lábios das pessoas. A Sara, naquele momento, sentiu o calor das palavras, aquele certo jeito de dizer que é da nossa terra e é tão nosso como a paisagem, o comer no prato lá de casa, a maneira de construir as casas, os nomes dos sítios, o café onde íamos quando éramos mais novos.
Quando estacionou em frente da casa da avó, ainda ia a sorrir, apesar do coração aos saltos do susto e da preocupação daninha com a tal discussão com o namorado.
Estava um sol esplêndido. O dia apetecia. Ao fundo, viam-se as montanhas ali onde a velha província começa a transformar-se em Trás-os-Montes. Para o outro lado, sentia-se a claridade do mar, que não se via. A mesa estava posta debaixo duma árvore de que não sabia o nome – o que ela daria para saber os nomes das árvores! –, ali ao lado duma pequena horta – e, se se aproximasse do parapeito por cima duma ladeira, a uns passos dali, via o rio Minho a passar lá em baixo. Magnífico.
A família ri-se muito, contam-se piadas só deles, histórias repetidas que apetece sempre ouvir de novo, reencontram-se tios, e primos e mais amigos. Alguns vêm da França, outros do Porto, alguns de Lisboa e veio também, este ano, o primo do Canadá.
O sotaque de todos era uma estranha mistura do sotaque daquela zona com os sotaques dos vários lugares do mundo por onde andavam. Ali, todos juntos, a pintura sonora ficava um pouco mais diluída nas cores daquele Minho muito verde.
A Sara sabia bem que, aos ouvidos da avó, a sua voz já soava a puro lisboeta – enquanto lá em Lisboa, aos ouvidos dos colegas, continuava a soar a minhota.
Misturas, quantas misturas. Algumas crianças gritam em inglês, enquanto correm à frente dos primos – todos riem, há frases em francês, outras com sotaque do Sul, algumas com travos brasileiros (a mulher do canadiano é brasileira). Alguns dos familiares que ficaram pelo Minho bichanam ao ouvido quando ouvem a mistura de línguas. Uma tia até chega a dizer, com sotaque bem minhoto:
– Não falem assim à beira da nossa Sara, que é professora de Português!
Ela ri-se e, pelas costas da tia, lá diz para continuarem a falar como quiserem, com um piscar de olhos, que ela hoje está de folga. Por sua vez, nas costas da Sara, a tia pergunta a outra tia quando é que a pequena se casará. Uma rapariga tão jeitosa e nunca trouxe ninguém à festa…
Eis senão quando o Duarte, que vive em Monção, se chega perto da Sara. É um primo afastado, de grau já muito difícil de entender. Tem o mesmo apelido que ela, é certo, mas se é neto da tia-avó ou primo do tio do pai – ninguém sabe muito bem. Sorri. O Duarte sempre teve um fraquinho por ela – e, para dizer a verdade, ela também não desgosta da atenção que todos os anos recebe desse agradável minhoto. Há até umas memórias difusas de abraços mais intensos do que seria de esperar – memórias misturadas com brincadeiras de crianças, muito sol e algumas conversas já nos anos difíceis da adolescência.
– Então, prima, como vai a vida lá pelo Sul?
– Oh, bem, bem!
– Já estás feita uma moura. Encantada, claro está…
Ela sorriu. Aproximaram-se os dois do parapeito que dava para o rio.
– Olha, tenho ali uma coisa para te mostrar, no sótão…
Ela riu-se com franqueza:
– Que raio de ideia é essa? A querer levar-me para o sótão?
– A sério, a sério, sem segundas intenções. Acho que tens interesse em ouvir o que encontrei.
– Ouvir?
– Sim senhora!
Foram os dois primos ao sótão e por lá encontraram quinquilharia a monte. Mas a um canto, arrumados já à espera de serem apresentados à visitante curiosa, estavam uma velha geringonça e uns quantos cilindros de cera.
– Um fonógrafo?…
– Ah, pois é!
O Duarte passou-lhe o cilindro para as mãos e ela olhou para a etiqueta: «Registo phonographico do cons.º Pinto Porto, recolhido em Janeiro de 18–, na Póvoa do Varzim».
O nome «Pinto Porto» lembrava qualquer coisa, uma história que ouvira há muitos anos – ou seria um livro?
Minutos depois, com algum cuidado e depois de quase terem deitado ao chão tudo aquilo, o fonógrafo começou a trabalhar, com o Duarte a dar à manivela – e os dois primos ouviram uma voz com mais de cem anos, que deu à Sara um arrepio na espinha:
«Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?»
Estava pasmada, já a pensar que aquilo seria, provavelmente, a mais antiga gravação duma frase em português, quando percebeu que havia mais pessoas a falar. Seguiu-se um breve diálogo que a levou a sentar-se, com o coração aos saltos.
Era impossível! Impossível! E, no entanto, ali estavam as vozes, as vozes deles. Ainda por cima, juntos!
Ora, agora vão ter de me perdoar esta desfeita – mas lá por estarmos a falar da história da língua, a verdade é que, como leitores que são, merecem algum suspense, alguma intriga, alguma surpresa reservada para o final… Por isso, não vos vou contar que conversa ouviu a Sara ao fim da tarde de Primavera do Alto Minho – nem a quem pertenciam essas vozes que a deixaram de boca aberta e coração aos saltos. Mas prometo que hão-de saber até ao final do livro.
Ao descer as escadas, iam os dois primos muito mais próximos do que ao subir, pois a adrenalina, como sabem, aproxima as pessoas e as emoções fortes são o melhor prelúdio de um beijo de Verão…
Uma língua falada
Reparem agora: muitos dos falantes de português, ao longo dos tempos, não sabiam nem ler nem escrever. Mas todos contavam histórias, sussurravam segredos, imaginavam intrigas, rezavam e conversavam.
O que sabemos dessa língua diária, quotidiana, baseia-se apenas nos restos que sobraram do pouco que se escreveu – a história da nossa língua está nos escassos papéis que sobreviveram ao turbilhão dos séculos.
Ora, a língua é muito mais do que esses restos de palavras escritas que, por acaso, encontrámos. É por isso um erro dizer que a nossa língua nasceu quando surgiram os primeiros documentos escritos, nos primeiros séculos do segundo milénio – para que esses documentos aparecessem, muitas gerações já teriam falado a nossa língua em casa e na rua. Longe de ter nascido no início do segundo milénio, ali por volta da mítica data de 1143, a nossa língua deu os primeiros passos muitos séculos antes.
Ah, mas estou a adiantar-me. Para já, só queria que reparassem nisto: durante séculos e séculos, quem sabia escrever era uma parte muito pequena da população. E mesmo pessoas importantes e ricas não escreviam nem liam. Afinal, muitos dos nossos primeiros reis não sabiam escrever…
Pensem bem: só nas últimas décadas aprendemos quase todos a escrever. E, sem reflectir, achamos que sempre foi assim. Mas, como todas as línguas, o português é uma língua, acima de tudo, falada.
Para podermos saber as histórias das pessoas que falaram português e o que sentiam ao falar, temos de imaginar muito. Muito mesmo. Por isso, convido-vos a imaginar algumas das histórias de quem falou a nossa língua ao longo dos séculos. São histórias de quem viveu, trabalhou e amou nesta peculiar maneira de falar que é a língua portuguesa.
Continua…
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Com esta introdução não se pode resistir à tentação! A celta a dizer ao romano quanto gostava dele e beijocando. Como é que vai acabar este início de diálogo em português?
E o que vai acontecer à Sara?
Brilhante meu caro Marco.
Abraço,
Pedro
Muito obrigada pela sua escrita, que me dá um enorme prazer ler!
Tal como o Pedro, também eu fiquei com vontade de saber o resto desta história, e de outras que venha a partilhar no futuro.
Margarida