Como é que os peixes aprendem a camuflar-se?
Sei que já temos o Oceanário, mas por vezes é bom voltar ao velhinho Aquário Vasco da Gama. Aqueles corredores de madeira e toscos ecrãs a tresandar a anos 70 lembram-me a infância e as viagens de estudo. E lá estivemos, com o meu filho e os meus sobrinhos, a olhar para peixes de todos os tipos e feitios.
A certa altura, maravilhámo-nos com a maneira como alguns peixes se camuflavam.
Aqui está um peixe armado em rocha (procurem bem, está ali no centro da imagem, no meio das duas pedras, na sombra, virado para o canto inferior direito):
E, depois, abrimos a boca perante uma raia armada em fundo do mar (diga-se que as fotos foram tiradas sem flash, para não incomodar ninguém):
É um espanto, não é? E perante isto, podemos perguntar: mas como é que estes peixes conseguem? Como é que se armam em espertos e se disfarçam? Será de propósito? Pensaram nisso? Alguém andou a afiná-los?
O mecanismo da evolução
Ora, pensar na camuflagem ajuda-nos a perceber o mecanismo da evolução por selecção natural. Não há nada consciente no mecanismo, mas o resultado parece planeado. É um truque magnífico da Natureza, embora a Natureza, diga-se, não pense nisto como um truque. Aliás, a Natureza pensa pouco: age muito mais.
A evolução por selecção natural ocorre em dois passos: todos os seres são ligeiramente diferentes uns dos outros, mesmo dentro de cada espécie. Estas diferenças vêm, por exemplo, das pequenas mutações genéticas, inevitáveis e muito úteis, que ocorrem no momento da reprodução.
Ora, alguns seres acabam — devido a estas mutações — por ficar mais bem preparados para enfrentar o mundo em redor e, assim, reproduzem-se mais e espalham a tal mutação por cada vez mais descendentes.
É um processo natural e lógico. Se, por via duma mutação, uma raia começar a parecer-se mais com o fundo do mar onde vive, vai conseguir fugir um pouco melhor aos predadores — e, assim, sobrevive mais tempo, reproduz-se mais, passa esse gene melhorado aos descendentes, que também conseguem reproduzir-se melhor, num efeito multiplicador que é a grande razão por que a vida tende a invadir todos os recantos da terra.
Mais tarde, se nova mutação levar a que uma das descendentes da tal raia ainda se pareça mais com o fundo do mar — melhor! Por outro lado, se a mutação for em sentido contrário, será mais provável que a pobre raia com o seu gene alterado acabe no estômago do predador em vez de passar a mutação à próxima geração.
Isto tem mais a ver connosco do que muitos gostam de admitir: todo o nosso corpo foi criado assim, devagar, ao longo de milhões e milhões de anos. Aliás, muitas das nossas tendências psicológicas saíram deste processo de escultura genética. Sim, eu sei, temos a cultura, o acaso, as opções individuais — mas tudo isto acontece em cima desse material humano criado ao longo de milhões e milhões de anos de evolução.
Algumas pessoas ficam incomodadas com esta descoberta. Por algum motivo, gostavam que o ser humano tivesse sido criado de uma só vez. Noutros casos, o incómodo está nessa ideia de que existe uma natureza humana, de que temos tendências inscritas em nós — ora, isso é o que acontece com todos os animais, por que razão havíamos de ser diferentes nesse facto tão básico de todos os seres vivos do nosso planeta?
Aliás, estou em crer que aquilo que nos une na nossa humanidade comum é precisamente aquilo que também nos une aos outros seres deste planeta. Todos nascemos, temos necessidades e emoções — e depois nós, seres sociais e muito inteligentes, também temos ideias, amores, desejos formulados em língua de gente. E, sim, conseguimos juntar a isto a consciência de aqui estarmos, a necessidade de criar qualquer coisa para lá do dia-a-dia, a curiosidade de saber um pouco mais sobre o que nos rodeia, o que nos empurra para a arte, a filosofia, a ciência…
Muitos de nós também temos esta mania de tentar melhorar, o que nem sempre dá bons resultados, mas é um bom instinto. Há ainda quem fique impaciente: perante a nossa terrível imperfeição, desespera, como se tivéssemos caído do paraíso imaginado. E, no entanto, nunca fomos anjos, mas antes animais conscientes e que desejam, em certos momentos, ser mais do que isso. O problema é que somos também inteligentes, muito inteligentes — o que é óptimo, mas aliado ao nosso tribalismo ancestral, tem resultados terríveis.
Desse processo que deu origem à nossa querida espécie, há muito que não sabemos. Mas sabemos pelo menos isto: somos herdeiros dessa carga antiga, modelada durante tanto tempo por esse mecanismo que explica a camuflagem dos peixes.
O perigo das bactérias mutantes
Gosto de saber estas coisas porque sou curioso (não somos todos?). Mas também vale a pena saber isto por outras razões. Afinal, esconder a natureza humana pode dar mau resultado — e não perceber a evolução até faz mal à saúde.
As bactérias, por exemplo — o nosso uso dos antibióticos por tudo e por nada é muito perigoso. Porquê? Porque as bactérias mudam de geração como nós mudamos de cuecas. Aliás, a coisa até é mais rápida: se tomarmos em consideração um humano que mude de cuecas com menos frequência do que o razoável, antes que tal senhor experimente boxers novos, já as bactérias conheceram as suas trisnetas.
Ora, neste cenário, ao usarmos os antibióticos de forma descuidada, estamos a dar oportunidades aos bichos para, através das tais mutações que ocorrem sempre (e de forma aleatória), acertarem numa qualquer alteração genética que torne a bactéria imune àquele antibiótico. Ora, a partir dessa avozinha rija, temos filhas, netas, trisnetas, milhões de descendentes aos saltinhos… Todas imunes! Lá ficamos com uma estirpe que não morre com aquele medicamento em particular. Pum: quem morre somos nós quando a netinha da senhora bactéria entra no corpo de um ser humano.
Reparem que isto acontece por causa de mutações aleatórias: mas quantos mais antibióticos desnecessários tomarmos, mais probabilidade temos de levar com a tal neta maluca da senhora bactéria. E, de facto, infelizmente, as bactérias super-resistentes têm aparecido por esse mundo fora. A sorte que tivemos com a invenção dos antibióticos (os milhões de vidas que foram salvas!) pode estar a ser desperdiçada, agora, por não nos sabermos controlar.
O que fazer? Bem: não tomar antibióticos a não ser quando for necessário. Os médicos sabem disto. Nós também. Mas, mesmo assim, é tão comum tomá-los por dá cá aquela palha. Enfim, a culpa é da natureza humana, que saiu do forno implacável da evolução por selecção natural, que não sabia o que eram antibióticos nem quais as características certas para viver em sociedades complexas no início do século XXI. Mas podíamos ser um pouco mais espertos e contrariar a nossa preguiça tão humana…
Bem, estamos muito longe do Aquário Vasco da Gama. Esta viagem foi mais longa do que o previsto. Mas não faz mal. Gosto de viajar sem plano.