Há pessoas que gostam de olhar para o chão e explicar-nos que rochas temos por baixo dos nossos pés. Os professores de geologia, por exemplo.
Gosto de os ouvir — tal como gosto de ouvir quem explica as subtis diferenças arquitectónicas, jurídicas ou artísticas dos vários países e regiões da Europa.
Eu é mais línguas, como sabem. E, por isso, quando viajo, acabo por reparar nas palavras que encontro à minha volta pelas ruas deste nosso continente.
Assim, atrevo-me a isto: vamos dar uma voltita por essa Europa e falar um pouco das línguas que vemos nas ruas.
Não se esqueçam que um dos prazeres de viajar é reparar, ver de novo, aprender alguma coisa. E nada melhor para nos ajudar a viajar melhor do que ler (nem que seja um simples blogue de línguas e tradução).
Vamos a isto!
Comecemos por dar um salto por cima da Península Ibérica. Porquê? Não é certamente por ser paisagem linguisticamente pouco interessante. Muito antes pelo contrário: é dos espaços mais interessantes nesta matéria. Mas, por isso mesmo, deixemo-la mais para o fim.
Damos um salto por cima, mas não saímos da península: aterramos num vale pirenaico, no belíssimo e riquíssimo Principado de Andorra.
Antes de continuarmos, deixem-me que vos diga: há quem arranque cabelos com os erros mais ou menos reais que saem da língua dos outros. Pois eu arranco cabelos quando alguém fala de Andorra como se fosse parte de Espanha.
Não: Andorra não é parte de Espanha.
Andorra é um país independente, membro da ONU, com Governo, Parlamento, Constituição, bandeira e por aí fora.
Tem, isso sim, um chefe de Estado sui generis: o Príncipe de Andorra são duas pessoas.
Quem?
O bispo de Urgell (localidade que fica na vizinha Catalunha) e o Presidente da França.
Antes que comecem a dizer que, por isso, não podemos dizer que se trata de um país, lembrem-se que o Canadá também tem como chefe de Estado a rainha do Reino Unido, tal como a Austrália e mais uns quantos países. Afinal, a Rainha da Jamaica chama-se Isabel II! Quer isso dizer que a Jamaica não é um país? Bem me parecia.
Voltando ao terceiro país ibérico… Os andorranos não são cidadãos espanhóis nem franceses: são andorranos, ponto final.
Muito bem: já vimos que Andorra é um país. Mas, que língua se fala por lá? É verdade, já estamos a falar há não sei quantas linhas e ainda não chegámos ao que aqui nos trouxe.
Pois bem, no que toca às línguas, comecemos pelo mais fácil — e simultaneamente mais curioso.
Andorra não tem como língua oficial o espanhol e muito menos o francês.
A língua oficial de Andorra é uma só: o catalão.
Exacto, a língua oficial de Andorra é uma língua que alguns portugueses julgam ser um dialecto.
Ora, se a diferença entre dialecto e língua é bem mais discutível do que se pensa, a verdade é que dificilmente podemos considerar o catalão um dialecto do espanhol, por todas as razões e mais algumas: evoluíram directamente do latim, têm diferenças significativas de estrutura e vocabulário, tanto o espanhol como o catalão têm dicionários, gramáticas e por aí fora.
Mas sobre tudo isso falaremos mais tarde, quando voltarmos à nossa península.
Agora, basta dizer que Andorra tem essa única língua oficial — e que por isso a TVC (televisão regional da Catalunha) gosta de transmitir os discursos do primeiro-ministro de Andorra na ONU, porque é a única oportunidade que têm de ouvir o catalão num grande fórum internacional…
Se a língua oficial é o catalão, qual é a situação na rua? Que línguas se falam no dia-a-dia.
A situação, claro está, é bem mais difícil de explicar do que dizer qual é a língua oficial.
Na rua ouve-se muito espanhol (uma grande parte da população é espanhola) — tal como também se ouve muito português (uma grande parte da população é portuguesa).
Na zona mais chegada à França (Pas de la Casa), ouve-se também muito francês.
E nas escolas?
Nas escolas públicas, a língua do ensino é o catalão.
Nos notários, tribunais, etc., a língua é o catalão.
E entre os cidadãos andorranos, também se fala catalão.
Haverá muitas misturas, muitas situações complexas, o que é natural num pequeno país encravado entre França e Espanha (e, do lado espanhol, o que temos é a Catalunha, com a sua situação linguística peculiar).
É aborrecido? Nem por isso. Quem por lá vive não parece queixar-se muito.
Em resumo: quem ande pelas ruas de Andorra com os ouvidos bem abertos irá ouvir catalão, espanhol, francês, português e mais umas quantas línguas (até o galego, veja-se bem).
“Església de Sant Esteve (Andorra la Vella) – 8” by MARIA ROSA FERRE ✿ – Flickr: Esglèsia romànica Sant Esteve, Andorra la Vella. Licensed under CC BY-SA 2.0 via Wikimedia Commons.
Proponho-vos então que, da próxima vez que forem a Andorra, reparem nas línguas.
Reparem na estranha sonoridade da língua de quem é mesmo andorrano.
Reparem como nas caixas de multibanco aparece a bandeira de Andorra (ou da Catalunha) a assinalar a língua principal (e o espanhol e o francês aparecem como opções, tal como o inglês).
Reparem em que língua estão escritas as placas da estrada.
Reparem, no fundo, nessa língua estranha e quase invisível aos olhos portugueses que é o catalão, única língua oficial de Andorra.
(Podem começar pela fotografia que encabeça este artigo: reparem na “Farmàcia” no canto inferior direito. Reparem no “Crèdit Andorrà“. Reparem no “Servei 24 hores“. Eis a língua catalã…)
Ora, deixem-me ainda contar-vos que foi nesse país minúsculo do outro lado da península que comecei a ficar obcecado pelo mundo das línguas. Estávamos em 1993…
Bem, isto já vai longo. Conto-vos mais tarde…
Esta viagem há-de continuar!
É uma maravilha ler as suas lições.
É interessante notar que houve uma “Andorra” galego-portuguesa até 1864. O Couto Misto era um pequeno estado independente na raia. Portugal e Espanha, saltando toda legalidade internacional, suprimiram o Couto Misto no Tratado de Lisboa.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Couto_Misto
É uma óptima lembrança! Se a tanto ajudar o tempo que é sempre pouco, havemos de voltar a esse tema por estas bandas. Obrigado!
Gosto imenso de catalão e também foi em Andorra que pela primeira vez o ouvi. Gosto, estranhamente, do som gutural da língua e das semelhanças com o francês. Não é de leitura fácil – a Cerdenya lê-se Cerdenha. O “ny” catalão é o “ñ” espanhol e tem outras peculiaridades que gosto como a “l geminada” que prolonga o som do “l” em, por exemplo, “paral·lel”. Gosto imenso de línguas estrangeiras e sempre que estou na Catalunha, esforço-me por entender e falar a língua. Ementas em catalão, jornais e televisão catalães. Costumo dizer aos meus amigos catalães – que fazem questão de só falar catalão – que terem duas línguas só os enriquece. Se pudesse, se a vida me permitisse, não faria outra coisa senão aprender línguas estrangeiras. Parabéns pelo seu blog.
ny, ñ, nh, gn… som diferentes representações do mesmo fonema. Nom tem dificuldade nenguã.
A Andorra é parte da Espanha? É a primeira vegada que o escoito. Tenho escoitado moitíssimo mais que Gibraltar é da Espanha. E isso que apenas som catro leiras. Incluso, tenho escoitado mais que o Sáhara é espanhol. Mais Andorra… isso é novo.
É uma ideia falsa comum em Portugal, infelizmente.
O Luxemburgo é parte da Alemanha? San Marino é parte da Itália? E a Cidade do Vaticano?
Claro que não! O texto está a criticar a própria ideia errada, não está a justificar… 🙂
Marco, estamos no século XXI. Uã cousa é nom sabelos países da América ou da África (isso ainda tem um passe) e outra moi distinta é nom sabelos países da Europa. Ademais, estamos falando da Andorra; nom da Letónia.
Em Portugal nom tivestes, na escola, exames de países e capitais da Europa?
Sim, mas será a única ideia errada que ouvimos por aí? O que posso fazer mais do que escrever textos a criticá-la? 🙂
Isso é verdade.
Outra opçom seria, estudar mais.
Também fico admirado com essa falta de conhecimento, mas é um facto que vejo à minha volta.
Também é verdade que na escola se dizia que Andorra era uma espécie de condomínio hispano-francês, o que criou muitas confusões. Hoje em dia a confusão começa a ser mais rara.
Bem, pois o importante é o “hoje”. A ver se se vai emendando essa situaçom.
Respeito ao do condomínio, isso só é válido prás forças armadas. Os encarregados da defesa da Andorra som as forças armadas da França e da Espanha. Ainda assim, a Andorra tem polícia; pros asuntos internos.
Mónaco tampouco tem forças armadas (a França é quem a defende, caso houber um ataque). Costa Rica nom tem exército.
Se essa é a definiçom dum país, mal vamos…
Sim, claro, eram explicações confusas e erradas… 🙂
Caro Marco, estava a pesquisar a situação linguística de Andorra e, num desses bambúrrios googlianos, caí aqui. Não poderia esperar um texto mais elucidativo e bem escrito. Obrigado.