Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Viagens na Minha Casa (de A a Z)

Que viaje até Santarém quem vive noutra época — com este vírus que Deus nos deu, o próprio Garrett não se atreveria a ir sequer à Azambuja… Fiquemo-nos, portanto, em casa. Não há-de ser nada. E se estamos em casa, porque não uma volta a ver as vistas, de A a Z?

A de Água
O Matias, o meu filho mais novo, decidiu que lavar as mãos é muito divertido. Nada a dizer, só a agradecer. Mas o que ele faz é chegar-se ao belo do bidé, abrir a torneira e começar a empurrar a água com a mão para ver se faz um repuxo em condições. Caos aquático em toda a casa de banho e uma das muitas estranhezas deste tempo: dois pais, de mãos na cabeça, a dizer ao filho para parar de lavar as mãos. Lá vai um de nós buscar a esfregona, enquanto outro extrai o filho da casa de banho, tentando não escorregar. O miúdo, claro, faz uma curta birra de grande intensidade, até se esquecer dos prazeres da água. Entretanto, há outro filho algures em casa.
B de Bola
Se o Matias-que-lava-as-mãos tem dois anos, o Simão tem sete — e se há coisa de que gosta é jogar à bola, o que se aconselha nestes dias de pouco exercício. Só que em casa, no meio das estantes e das molduras, a bola tem uma certa tendência para o desastre. Lá vamos os dois ao pátio do prédio, para uma meia-hora diária de futebol a dois. O meu filho está feliz nesses minutos: está a jogar com o pai, que não tem outro remédio que não seja aprender a dar um pontapé de jeito, e não se lembra nem do vírus nem do medo. Quando voltamos, vai lavar as mãos com o irmão atrás e logo avançam os dois para transformar o sofá num barco de piratas ou a cama num trampolim.
C de Chuva
Logo a abrir esta estranha Primavera, choveu. E, não sei bem porquê, soube bem olhar para a chuva a cair nas ruas vazias. Passava um triste carro de vez em quando, um autocarro vazio, um ciclista a desafiar a água e os micróbios. O Matias chegou-se à janela, olhou para a água e levantou as mãos, num sinal de que queria ir lavá-las.
D de Descobertas
Enquanto o Matias está a inundar o bidé, o Simão descobre as maravilhas do Tintim, que o Netflix traz até à nossa sala. Esquecido da bola, sonha com aventuras. E, fechados em casa, os territórios por descobrir são inesperados. Temos duas varandas, mas quase não usamos uma delas, cheia como costuma estar de roupa a secar. Pois, hoje, a Dora e o Zé (meus cunhados), que vivem do outro lado da rua, vieram até ao passeio por baixo dessa desprezada varanda visitar-nos a uma cautelosa distância. Lá fomos os quatro para os ver. O Matias ficou pasmado: descobriu a varanda como se fosse um novo país. Não tem praia, não tem museus, mas tem os tios a acenar lá em baixo. O Simão, armado em Tintim, saltava e corria, como se a varanda fosse o Karaboudjan. A Zélia conversava com a irmã à varanda e eu tentava que o gato não fugisse, irritado como anda, sem perceber por que razão não lhe desamparamos a loja todo o santo dia.
E de Escola

Todas as semanas, os miúdos não têm escola durante dois dias. Durante as férias, chegam a ser meses. Pois, agora, bastaram duas horas fora da escola e já o Simão sofria de desalmadas saudades dos colegas. Combinámos entre os pais uma conversa virtual entre todos os miúdos. Foi o caos cibernético. Nos vários quadradinhos do ecrã, tínhamos lutas de irmãos, miúdos a jogar consola, conversas cruzadas em que ninguém se entendia, uma das crianças a rodar sem parar na cadeira (era o Simão), outra com vergonha de ver os colegas em pequenos quadrados pixelizados, alguns gritos desencontrados… No fim, o Simão estava muito feliz, a imaginar-se com os colegas no recreio cá de casa e a pedir mais encontros destes. Numa das noites em que lhe estava a contar histórias, percebi o grande problema: ele tem medo de que a escola não abra durante mais de um ano… Lá lhe expliquei que o isolamento não havia de durar assim tanto tempo. Para sossegar, ele quis ver num mapa o caminho até à escola — só para garantir que eu não me esquecia quando fosse altura de voltar. Quem diria que teríamos saudades do trânsito matinal? Entretanto, lá vamos aprendendo a viver sem sair do mesmo sítio.

Para a semana continuo pelo alfabeto fora. Por hoje, tenho de ficar por esta letra: o Matias está aqui ao meu lado a pedir para lavar as mãos.

(Crónica no Sapo 24.)
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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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4 comentários
  • Muito bom, Marco!

    Aproveitei para ler a crónica “Que fazer quando o nosso nome deve dinheiro?” Melhor ainda. Não desfazendo.

  • Obrigado, Marco, por mais uma interessante ideia que deu em artigo.
    No entanto, apresento uma nota de sugestão de correcção.
    Em “A de Água” porquê “belo DO bidé”? Porque não simplesmente “belo bidé”?
    A preposição (e artigo) neste caso assume um papel quase maneirista.

    • Agradeço o comentário. Já me aconteceu enganar-me (várias vezes) e corrijo sempre que encontro um erro ou alguém mo aponta. Mas, neste caso, o uso do adjectivo como substantivo seguido de preposição tem um efeito propositado, dando um toque de ironia ao adjectivo (não acho o bidé belo). Espero que não leve a mal recusar, neste caso, a correcção. Obrigado e um abraço!

  • Felizmente há quem saiba como tirar partido do tempo.
    E quem tem assim dois bicharocos pequenos em casa, tem de munir-se de doses de paciência e de imaginação.
    O quotidiano é um não-acabar de assunto para estender a comunicação.
    Este tipo de partilha tem o mérito de ser muito interessante e de ensinar outros a utilizar bem as horas ao dispor.
    obrigada

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