No sábado passado, fui com o meu filho, os meus sobrinhos e as suas mães até à Cordoaria Nacional. Para quê? Para ver dinossauros, que é vício tradicional das crianças depois dum filme de Spielberg cujo nome não me apetece recordar.
Ora, terminada a visita à exposição, saímos para a rua nessa quente tarde de Outono em que os gelados se misturavam com as castanhas. Demos a volta à Cordoaria, em direcção ao carro, a deliciar-nos com a paisagem lisboeta.
Nesses poucos minutos de passeio a pé pela Rua da Junqueira, acabei a viajar no tempo e, pouco depois, já no carro, ali para os lados dos Jerónimos, dei um salto imaginário até Barcelona — para logo voltar até Lisboa e pensar na grande surpresa que se esconde nos Jerónimos.
Eu conto tudo…
Cavaleiros medievais numa rua de Lisboa
Enquanto caminhávamos pela Rua da Junqueira, notei uma bandeira vermelha enrolada no mastro e uma indicação de embaixada por baixo.
Não consegui reconhecer o país assim à primeira (a bandeira estava enrolada) e atravessei a rua para ver que embaixada seria aquela.
Era a Embaixada da Ordem Soberana e Militar de Malta.
Não, não era a Embaixada de Malta. Esse país lá terá algum casebre escondido num recanto de Lisboa a servir de legação. A Ordem Soberana e Militar de Malta é uma organização católica cujo nome completo é Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta — e que também pode ser chamada de Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. Por incrível que possa parecer (e parece!), esta organização é um resquício das Cruzadas.
É a única organização sem território cuja soberania é reconhecida por vários países — o que significa que emite passaportes e tem embaixadas. A Igreja Católica em si também tem embaixadas (as embaixadas da Santa Sé), mas o caso não será tão estranho como o desta Ordem Militar, pois a Santa Sé é soberana no pequeno território do Vaticano.
Aqui temos uma espécie de relíquia dum passado de cavaleiros andantes e de cruzadas… Em conjunto com os países minúsculos da Europa (San Marino, Mónaco, etc.), são recordações dum tempo em que a Europa era um mosaico de condados, ducados, principados, reinos e impérios cujas fronteiras se sobrepunham e se misturavam sem grande respeito pelos criadores de mapas. Estávamos longe do mosaico aparentemente sólido de Estados-Nação a fingirem-se muito estáveis e antigos.
Um palácio em ruínas
Bem, uns metros depois, aparece-me uma nova visão do passado: um palácio em ruínas. É o Palácio das Águias, cuja história pode ser encontrada nesta página da Câmara. Mas, vá, antes de sair daqui em direcção a essa página, continue a ler, que isto ainda mal começou…
Só trouxe à baila este palácio porque nos lembra deste facto: a cidade vai-se transformando, renovando — e pelo caminho ficam alguns espaços, como relíquias, que nos põem a imaginação a dar piruetas: uma embaixada de cavaleiros medievais mesmo ao lado dum velho palácio em ruínas. E nem sequer vou falar do Chafariz da Junqueira (que não tenho tempo). Diga-se ainda (como veremos) que estas ruínas são bem menos enganadoras que os monumentos renovados e bonitinhos. Não que prefira tê-los em ruínas… Não é isso. O problema é outro: o passado… O passado é demasiado sedutor para o nosso próprio bem!
A glória nos Jerónimos
Foi neste estado de espírito que peguei no carro e avancei pela Rua da Junqueira até chegar perto dos Jerónimos.
Ah, os Jerónimos… Um exemplo perfeito da glória do passado ali preservada sem mácula! O exemplo acabado do estilo manuelino! O passado ali presente com a sua solidez de séculos!
O problema é que os Jerónimos que vemos ali já não são o monumento do século XVI. Entre acrescentos, reconstruções, obras variadas, acabámos com um monumento muito diferente do original.
Embora este aspecto enganador dos monumentos já não fosse uma novidade, foi um livro recomendado por Fernando Venâncio no Facebook (ainda dizem que a dita rede não serve para nada) que me mostrou até que ponto a História, mais do que reinventada, foi inventada há muito pouco tempo: La invención del passado, de Miguel Anxo Murado.
O livro vai muito para lá dos monumentos — mostra como muitas batalhas, acontecimentos e outras narrativas em que se baseiam as Histórias nacionais que temos na cabeça são dúbias ou, mesmo, improváveis. Isto, diga-se, vale para todos os países e para todos os nacionalismos.
Bem, já voltamos aos Jerónimos. Antes, para mostrar onde quero chegar, uso um dos muitos exemplos de Murado: os monumentos de Barcelona.
Barcelona antiga e moderna?
Em Barcelona, temos dois grandes monumentos religiosos: a Catedral de Barcelona, um monumento gótico e medieval, e a moderníssima (e modernista) Basílica da Sagrada Família.
Aqui está a catedral:
Esta catedral começou a ser construída em 1298. Se olharmos com atenção, começamos a imaginar os artífices medievais a criar o fino rendilhado gótico da fachada…
Já no meio do Eixample, temos aquela louca basílica que algumas pessoas o exemplo acabado duma modernice amalucada. É, certamente, um edifício de espantar, igual a nenhum outro. Falo da famosíssima basílica de Gaudí, que parece feita com os dedos ou então nascida do solo como uma planta de pedra e onde o difícil é encontrar uma linha recta:
A catedral representa, na nossa cabeça, a Idade Média — a outra é já uma invenção dos séculos mais recentes…
Só que (sente-se, por favor) a fachada da Catedral de Barcelona tem mais ou menos a mesma idade que as primeiras obras da Sagrada Família e o zimbório (a torre central) é de 1913. Aqui está a fachada da Catedral em 1880:
Por volta do ano em que o zimbório foi inaugurado, a Sagrada Família já existia:
Já o zimbório da Sagrada Família está à distância de décadas — mas no futuro. Será este, dizem, o aspecto final. No entanto, se o passado é difícil de conhecer, o que diríamos do futuro?
Voltemos à catedral gótica. A fachada foi construída por ocasião da Exposição Universal de 1888 por iniciativa duma família rica de Barcelona — um pouco como se os Champalimaud tivessem pago a reconstrução da Sé de Lisboa com uma fachada gótica por ocasião da Expo ’98 e, a partir daí, todos acreditássemos que aquilo era um bom exemplo do gótico medieval. (Em abono da verdade, devo avisar que a fachada da Catedral de Barcelona inspirou-se nos planos iniciais. Uma fachada gótica na Sé de Lisboa seria só um disparate.)
Sim, em grande medida, os nossos monumentos antigos são invenções mais recentes do que pensamos. Atenção: nada disto é segredo! Está em qualquer descrição histórica dos próprios monumentos — mas a história simplificada que temos na cabeça não regista essas notas de rodapé e convencemo-nos sem pensar duas vezes que, ao olhar para a Catedral de Barcelona, estamos a olhar para a Idade Média…
E o Castelo de São Jorge?
Sim, o Castelo de São Jorge tal como o conhecemos não é tão antigo como pensamos. Aqui está o aspecto da colina em 1877:
Olhem com atenção… Onde está o castelo? Está ali uma muralha, é verdade, mas nada parecido com isto:
A perspectiva também não será a mesma, mas dá para perceber que o Castelo monumental que temos agora não existia em 1877. De facto, como podemos ler em qualquer história do Castelo (basta ir à página do próprio monumento), aquilo que existe hoje é uma reconstrução feita durante as obras de 1938-40.
A página do Castelo diz-nos que há uma recuperação da antiga imponência: «Com as grandes obras de restauro de 1938-40, redescobre-se o castelo e os vestígios do antigo paço real. No meio das demolições então levadas a cabo, as antigas construções são resgatadas. O castelo readquire a sua imponência de outrora e é devolvido ao usufruto dos cidadãos.»
O problema é que era muito difícil saber o aspecto original — e, quando não sabemos, temos de inventar. É natural e acontece com quase todos os monumentos recuperados por essa Europa fora.
Podíamos estar horas neste exercício… As ameias, por exemplo, tão certinhas, que encimam tantos castelos nacionais são, muitas vezes, acrescentos modernos.
E os Jerónimos?
Voltemos aos Jerónimos. Aqui está uma foto do século XIX:
E hoje? Reparem no aparecimento da torre, que está bem longe de ser do século XVI…
Há ainda esta fotografia oitocentista que assusta qualquer pessoa…
A praça que rodeia o mosteiro (a Praça do Império) foi criada para a Exposição do Mundo Português, nos anos 40:
Quando o Centro Cultural de Belém apareceu ali como um lego cor-de-rosa, na verdade, era apenas mais um passo na contínua reformulação do espaço, que nunca terminou — e, certamente, daqui a 50 anos o aspecto já será outro.
Reparem bem: o Castelo de São Jorge que nós vemos é mais recente do que certas partes da Sagrada Família de Barcelona. É, aliás, mais recente do que a Avenida da Liberdade…
Isto não é novidade: no entanto, na nossa cabeça, temos um passado idealizado, onde estes monumentos já existiam tal e qual os vemos hoje. Isto é apenas um aspecto desta idealização do passado. A História foi recriada nos últimos dois séculos — tanto nas pedras das cidades, como na nossa cabeça. Em grande medida, as várias histórias nacionais são simplificações criadas durante os últimos 200 anos e espalhadas pelas populações através das escolas, da televisão, dos livros de divulgação.
Não se pense que antes era melhor: a grandíssima maioria da população não ligava nada à História e pouco sabia dos relatos nacionais. Se encontrássemos um qualquer português do século XVII, por exemplo, ficaríamos admirados com tudo o que ele não saberia sobre a nossa História — primeiro, porque a aprendizagem da História não era vista como importante para a população em geral; segundo, porque a forma como contamos a História é bem mais recente do que pensamos.
A História é muito importante — e, mais do que importante, é muito interessante. Mas se julgarmos que vemos o Passado e a Verdade — assim, em maiúscula —quando repetimos as histórias que nos contaram e vemos os monumentos das nossas cidades, estamos a enganar-nos a nós próprios. Aconselho, mais uma vez, a leitura do livro La invención del pasado. É um livro que cura certas obsessões nacionalistas que existem em todos os países — Portugal está longe de ser excepção.
E tudo para quê? Para termos uma relação mais realista da nossa capacidade de conhecer o passado…
Não fiquemos tristes: os historiadores descobrem muita coisa interessante e há tanto por saber escondido em artigos e livros de História — dá algum trabalho, mas vale a pena. Depois, para viajar até ao passado, há a imaginação: temos cavaleiros em ruas de Lisboa, palácios em ruínas, livros para ler e muita coisa para aprender e imaginar. Dificilmente não cairemos em anacronismos, mas temos de viver com essa nossa incapacidade de conhecer o passado como se fosse o presente. O passado é mesmo um país estrangeiro — e as fronteiras estão fechadas…
No fundo, a única forma de olhar para o passado sem errar é virar os olhos para as estrelas: a luz demora a cá chegar e, por isso, quando à noite olhamos para o céu, estamos a ver estrelas tal como existiam quando, aqui na Terra, ainda existiam os dinossauros que o meu filho e os meus sobrinhos viram em forma de bonecos lá para os lados da Cordoaria — dinossauros esses que, pelo que se tem descoberto nos últimos anos, afinal tinham penas (nem esse passado nos deixam sossegado).
Concordo plenamente com o arrazoado do autor. O tempo é um implacável destruidor de vestígios e nós, muitas vezes, não concordamos, pois gostaríamos que o passado fosse como gostaríamos de que ele tivesse sido. Querem um exemplo mais assustador? Não há um só “santinho” ou “cromo” de Cristo com a sua pele seca e pardacenta, afetada, fatalmente, pelo clima nada ameno da região da Judeia dos tempos bíblicos…
Por outro lado, vejo o trabalho do tempo como um discurso enganador. Só não engana o poeta, que olha a realidade presente e a transfigura, alterando-a ao seu bel-prazer.Estive em Lisboa, vi e escrevi:
LISBOA
Lisboa todinha
cabe na palma de minha mão.
Aperto-a contra o peito
e a transporto todinha
pro fundo do coração.
No Castelo de São Jorge
não existe dragão, não!
Lisboa parece um doce mar
de telhas encarnadas.
Escuras umas;
chamuscadas outras
pelo fogo da boca
do dragão
que não existe
no Castelo de São Jorge.
Muito bom!
Segundo a Wikipedia: “(…)A Ordem Soberana e Militar de Malta não tem sua sede no país de mesmo nome, mas sim no minúsculo território de apenas 6 km² que consiste em um prédio em Roma e seu jardim.(…)Sua população permanente é de apenas três pessoas, o “príncipe”, o “grão-mestre” e o “chanceler”. Todos os demais “habitantes” da Ordem de Malta possuem nacionalidade maltesa, mas também a nacionalidade do país onde nasceram (normalmente italiana). A soberania da ordem permite que ela imprima seus próprios selos e emita os seus próprios passaportes, concedendo, efectivamente, nacionalidade maltesa aos seus membros.(…)”
Esse território, ao contrário do território do Vaticano, é território italiano (será uma espécie de embaixada). Por outro lado, a Ordem Soberana tem uma soberania distinta da soberania maltesa; assim, haverá uma embaixada da Ordem e outra de Malta. Julgo, aliás, que o governo de Malta não tem qualquer interferência na gestão da Ordem. 🙂
Estarei no mês de novembro em Lisboa. Pergunto: onde poderei comprar os seus livros, Prof, Marcos Neves?
Olá! Pode comprá-los numa livraria. Se não estiverem disponíveis, envie-me mensagem para arranjar solução. Obrigado!
Muy interesante, sin duda. Sabia de la falsificación de la Catedral de Barcelona, y de todo el barrio gótico de la ciudad. Aquí le adjunto un artículo de un blog en catalán sobre el tema: https://glamboy69.wordpress.com/2015/02/12/el-barri-neogotic-la-falsificacio-romantica-de-barcelona/