Este vídeo está a correr a internet e é bem divertido, ajudando alunos estrangeiros da nossa língua a aprender a ler português europeu de forma mais natural:
Claro que perante uma descrição divertida e bem-feita da língua, a reacção natural de alguns comentadores portugueses é dizer que os outros portugueses, se falam assim, falam mal!
Esses comentadores acusam as pessoas que falam da maneira descrita no vídeo de serem preguiçosas. Ora, a verdade é que a grande maioria dos portugueses fala assim e há muito tempo! A verdadeira preguiça está na mente dos comentadores, que nem conseguem parar uns minutos para observar como eles próprios pronunciam as palavras.
Mas percebo as reacções: as nossas ideias sobre como pronunciamos as palavras são muito influenciadas pela imagem gráfica dessas mesmas palavras no papel. Assim, há pessoas que não reparam que os portugueses raramente lêem o «s» de final de sílaba como «s» (mas sim como «ch» ou «j») e há quem não repare que há muitas vogais que desapareceram — e que, sim, todos nós dizemos, em conversa corrente, «qu’rido» e não «querido» (entre muitos outros exemplos). Todos elidimos estas vogais de forma natural, mas muito poucos reparam no que fazem com a língua — e há quem acabe a declarar que quem fala assim fala mal, sem perceber que faz a mesmíssima coisa (e faz muito bem!).
Não é só em português que a escrita acaba por nos enganar na hora de ouvir com atenção a maneira como dizemos as palavras: tal como li comentários ao vídeo em que alguém dizia que nunca diz «qu’rido», também muitos ingleses estão convencidos que no final da palavra «doing» pronunciam um «g». Pura ilusão: o «ng» é pronunciado de forma vagamente semelhante ao nosso «nh».
Sempre houve e sempre haverá mudanças fonéticas que vão afastando a língua da escrita (que aliás nunca é uma representação perfeita dos sons). Isto acontece em todas as línguas, numas mais, noutras menos. Esse mito de que a cada letra deve corresponder um som é uma forma muito simplista de olhar para a nossa língua. Olhem para França, por exemplo. Como bem lembrou Fernando Venâncio no debate sobre o assunto no Observatório da Asneira, os franceses lêem AOÛT como U (!) — e o próprio AOÛT também já é um corte radical do AUGUSTUS latino. Será que um francês que diz AOÛT como U está a falar mal? Não: está a falar francês. Mas na lógica dos comentadores indignados do vídeo, não, um francês tinha de ler aquelas letrinhas todas…
Muita gente anda por este mundo convencida de que a maneira como se fala e escreve a sua língua representa uma decadência terrível desde o tempo em que se falava bem — tempo esse que mais não é do que uma ilusão criada pela memória muito selectiva dumas quantas leituras e conversas de há muito tempo. Convençam-se duma vez por todas: o tempo em que se falava «o português perfeito» nunca existiu.
Por isso, um português que diz no dia-a-dia [pur issu] e [‘chtou a ch’gar] está a falar bem. Quem lê as letras uma a uma e de forma artificial está a inventar um português que não existe (ou, em bom português, [izícht]). Em Portugal, ninguém lê «existe» como [êzisstê] — só que muitos estão convencidos que sim.
A língua é complicada e a ortografia não é uma questão de correspondência simplista entre sons e letras… Em vez de indignações preguiçosas, vejam o vídeo e reparem, com um sorriso nos lábios, na forma peculiar como nós transformamos as nossas letras nos sons da nossa língua.
(Só uma última nota: nada do que disse acima equivale a dizer que, num contexto formal, podemos ler tudo de qualquer maneira! Não, não, não: há dicções mais claras do que outras e todos podemos melhorar nesse ponto. Mas falar bem português de Portugal nos seus vários registos implica conhecer os fenómenos explicados no vídeo! Quem os contraria de forma consciente está a tentar inventar uma língua inexistente. Confundir boa dicção com ideias erradas sobre a fonética da nossa língua é, deixem-me dizer-vos, sintoma de preguiça — ou de indignação linguística apontada ao alvo errado. )
Concordo inteiramente, mas não podemos negar que estamos a dificultar o trabalho dos estrangeiros que queiram aprender português. José Carlos Fernandes tem um artigo muito interessante (e longo, e controverso, e algo apocalíptico) sobre este assunto. Pode ser lido aqui: http://observador.pt/especiais/o-portugues-devora-se-a-si-mesmo/
Obrigado! 🙂 Conheço o artigo que refere, que comentei aqui: https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/vogais-ha-muitas-e-nao-se-fala-cada-vez-pior/
Um abraço!
E os anglo-falantes também não nos dificultam a vida quando aprendemos inglês? Basta comparar o som de “gh” em “tough” e “though” ou o “o” em “woman” e “women”, apenas para citar dois casos. Ou em Francês, entender que “aime”, “aimes”, “aiment” se pronunciam todas da mesma maneira, mas com grafias diferentes. Komèké?…
Estou plenamente de acordo com o Marco sobre o tema referido no artigo. É verdade que por preguiça ou economia, eliminamos muitos fonemas na nossa dicção diária. Aliás, esta é uma das regras da evolução fonética das línguas: e economia. Por isto mesmo o acordo ortográfico é muito perigoso e será desastroso, porque “pôs o carro à frente dos bois”. Mas, e há sempre um “mas”, a preguiça de que fala o Marco percebe-se melhor em Lisboa e na televisão. Na província, não se nota de forma nenhuma essa tendência tão forte. Mesmo os alunos adolescentes das escolas secundárias ainda usam a segunda pessoa do plural: p’ra onde ides?
Lá tá o D. Quixote a combater os moinhos de vento…
E já agora, na escrita (não formal) também se “comem” letras
Um rebuçado para quem detectar isso na minha frase inicial 🙂
Acham que o inglês tem menos letras mudas que o português?
Olhem só aqui uma pequeníssima amostra feita por um americano: https://www.youtube.com/watch?v=sg1UMiMrNkk&index=5&list=PLyrvYN42zzwPxRvJ1a3vSNnQyeCBmYECA&t=1s
Não, tem mais. 😉
Bem, segundo a sua lógica continuada de que está tudo bem, mesmo que não esteja (e não está) e que já tivesse estado claramente melhor, proferir “dezer”, “emportante”, “comprimento”, “constucional”, “acórdos”, “hádes”, “fizestes”, “prtgal”, etc. é falar bem. Mesmo que por vezes já nem nos percebamos uns aos outros e que haja uma degradação geral do uso do vocabulário, cada vez mais pobre e restrito. Para quando apontar algo que corra mal na língua? Já Francisco Rodrigues Lobo dizia que a língua portuguesa «só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada do que capa de pedinte ». Isto no séc. XVII… Será que vamos embarcar nas teorias do preconceito linguístico tão em voga no Brasil e noutros países que até determinam que não se deve corrigir a forma de falar que o aluno traz de casa, ainda que totalmente incorrecta? E que escrever “nó(i)s vai” é lídimo português? Ah, está tudo bem.
Obrigado pelo comentário e pelo interesse (que partilho) pela língua portuguesa. Já respondi neste artigo ao que me diz: «Está tudo bem com a língua portuguesa?» E, se vir bem, escrevo muitos artigos neste blogue sobre as ideias erradas sobre a língua. Há muita ignorância neste campo e muito a aprender e a melhorar. No que toca à escrita, não acredito que está tudo bem. Se assim fosse, não escreveria (só como exemplo) um artigo com ideias para evitar erros ortográficos. Não me passa pela cabeça dizer que “está tudo perfeito no melhor dos mundos”.
Dito isso, não embarco no facilitismo da idealização dum passado linguístico que nunca existiu. Mas, reconheço, essa idealização é uma constante de todas as épocas e todas as línguas. Sempre houve quem estivesse convencido que vivia no pior dos tempos no que toca à sua língua (e isto não é exclusivo do português).
Quanto ao argumento do vocabulário cada vez mais pobre, aqui fica outro artigo, se não se importar: https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/nosso-vocabulario-esta-cada-vez-mais-pobre/. Deixe-me contar-lhe um segredo: depois de ler mais um artigo em que alguém dizia que hoje já só conhecemos umas 100 palavras, fiquei intrigado. Será que o meu próprio vocabulário era pobre? Atrevi-me a contei as palavras diferentes que usara até então neste blogue. Resultado? 12000 palavras diferentes. E até hoje ninguém me disse que não compreende o que aqui escrevo. Aliás, parece-me que é fácil encontrar muitos blogues com vocabulário bem mais rico. (Já agora, um linguista profissional iria fazer uma análise mais profunda do que a minha, contando lexemas diferentes e não palavras. O resultado seria um pouco inferior, mas mesmo assim muito diferente desse discurso estafado do “já só usamos 500 palavras”. Esses mesmos linguistas, quando se põem a analisar e a contar lexemas, raramente encontram a tal diminuição do vocabulário que é dada como óbvia por quem nunca se deu ao trabalho de contar de forma rigorosa.)
E, por fim, uma pergunta: em que época a população portuguesa (no seu conjunto!) sabia escrever e falar melhor do que hoje? Estou a falar da população toda, não daquela parte que ia à escola…
Deixe-nos quietos cá, porque, se, por um lado, temos de aturar a cantilena do preconceito linguístico de Bagnos e quejandos, por outro, pronunciamos bem todas as vogais que por aí já se não ouvem senão na província. E olhe que aqui se entende, facilmente, até a fala do mais completo analfabeto, por muito que lhe custe fazer as concordâncias verbais e nominais que o mais ignorante dos portugueses talvez conheça desde o colo da mamãe.
Penso que se houvesse um português perfeito, e concordo com o Marco em que o não haja, a sua sintaxe seria europeia, e a sua pronúncia, brasileira.
JC,
Para começar, importava pusesse um pouco de ordem nos seus exemplos. É que, se reparar bem, grande parte deles nada tem a ver com o tema tratado, que é a ELIMINAÇÃO de sons representados na escrita, e sim com um outro fenómeno, o da Analogia, que é, como saberá, outro grande motor da mudança linguística.
Quanto à “degradação geral do vocabulário” (que também não era tema, mas que, nestes debates vem sempre à baila), garanto-lhe que é queixa ouvida desde há séculos e, mais, já suficientemente rebatida. O falante médio português de 20 anos possui um vocabulário activo (!) de uns bons milhares de vocábulos.
Acredite: essa atitude de desmerecimento da real expressão do idioma e do seu uso é tão repetitiva ao longo dos séculos (veja o seu Rodrigues Lobo em plena idade de ouro…) que só nos convence disto: se a verdade fosse essa, há muito estaríamos mudos. E já está a ver que não.
Cultive uma atitude positiva para com o nosso idioma. Repare também nos bons desempenhos. A par de reais deficiências, continuamos a exprimir-nos de modo muito razoável. 😉
Nós, os terráqueos, às vezes nos perguntamos: estaremos sós no Universo? Isto vai nos acompanhar até aos tempos em que os navegantes galácticos descobrirem novas “terras à vista!”, se antes não formos tragados pela Grande Extinção que nos espera. Recorde-se, um dia os solitários portugueses deram um basta ao isolamento (mesmo não sendo uma ilha) e após defenestrar todos os abismos, monstros e sereias puderam enfim gritar “Terra à Vista!” e… estava descoberto o subcontinente onde 300 anos depois El-Rei D. João VI ia dar o acabamento final: estava criado o Brasil. E agora podem debruçar-se na sacada e dizer: não estamos mais sozinhos. Quando leio um livro escrito por um português, impresso em Portugal não me vem nenhum embaraço à compreensão, não mais do que possa ter na leitura de um autor brasileiro e isto já me basta para não aceitar a opinião de duas línguas, uma lá e outra cá. Mas também não tenho dificuldade nenhuma de compreender o português falado via televisão portuguesa onde se vê o cotidiano das pessoas desfilando por 24 horas todos os dias. Só mais um adendo, o feito dos navegantes galácticos não é e não será jamais maior que o heroísmo português das grandes viagens e descobrimentos. Obrigado Portugal por existir… Até já…
Olhe, dizer que não nos vem embaraço algum à compreensão quando lemos autores portugueses é exato; já não o é, contudo, dizer que compreendemos perfeitamente bem os portugueses quando falam.
Custaram-me algumas semanas para que compreendesse bem os portugueses na SIC, a que assisto pela TV a cabo. Hoje, perco uma ou outra palavra. Ainda assim, preciso de prestar menos atenção aos apresentadores da CNN cuja dicção é mais clara do que à maioria dos portugueses, excetuados os do Norte, cujo sotaque é bem mais claro que o dos lisboetas, p. ex.
Há, Francisco, mesmo entre os portugueses quem alerte para a necessidade de suavizar o cerramento da pronúncia, que lhes dificulta serem entendidos não só por brasileiros e espanhóis, mas também entre si, quando se deparam dois nativos de regiões mais afastadas do país. É claro que haverá nisto algum exagero, além do que a eventual incompreensão entre compatriotas ocorre também aqui, mas não será inverídico.
Não me parece mais complicado do que a relação que existe entre a ortografia e a fonética do francês europeu. Tentei reunir um máximo de explicações num manual que fui construindo à medida que ensinava e que acabei por editar. Bastou considerar que cada letra pode adotar vários sons e que frequentemente encontramos constância na atribuição de determinado som a uma letra segundo o seu posicionamento na palavra. No fim de contas, a relação fonética e ortografia do português europeu acaba por se revelar relativamente simples mesmo tendo em consideração o emprego oral usual da língua. As elisões feitas quando passamos ao registo oral surgem naturalmente do ritmo acelerado com que tendemos a comunicar fazendo com que, naturalmente, certos sons fechados tendam a desaparecer como as vogais fechadas ou até sílabas átonas.
Ouve-se muito na tv dizer as formas verbais sem passado.
Ex: falamos em vez de falámos. Eu acho mal que me diz?
Obrigado
Pode dar-me um exemplo concreto? A verdade é que nunca ouvi esse erro. Mas gostava de ouvir um exemplo para poder falar concretamente.
Nasci e cresci no Brasil e com certeza a maioria dos portugueses que conheço falam dessa maneira, “engolindo as vogais”.
No brasil se fala a palavra exatamente igual se escreve, aqui nós não comemos as vogais. Pelo que sei falamos a mesma lingua que falava cabral. Acho que vocês portugueses que foram perdendo o costume de falar as vogais para simplificar seu modo de pronunciar as palavras. Mas nós brasileiros ainda falamos o português muito parecido com original.
Nem uma coisa nem a outra.
Nas sílabas átonas as vogais são sempre fechadas. Coisa que não acontece no Brasil. Por isso pensam que omitimos as vogais mas estão errados. As vogais estão lá, só que fechadas e por ventura encurtadas pela terminação da consoante dar seguimento ao som da vogal. Por isso estas parecerem omissas a quem não as fecha.
Inclusive a letra “e” tem em Portugal um som que não existe no Brasil. Todas as palavras átonas com esse “e” soa a total omissão para um brasileiro porque não conhecem esse som.
O Pt do Brasil mais próximo do Galaico/Português ??? Nem pensar! O Pt do Brasil é uma forma simplificada e linguisticamente mais pobre e o Acordo Ortográfico veio nivelar por baixo tornando o Pt de Portugal bastante mais pobre.
Não, as sílabas átonas não são sempre fechadas. Há inúmeros exemplos contrários: Camões, padeiro, magnífico, etc.