Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Volta à França» é erro de português?

Já sei, já sei — tenho andado afastado da tarefa de proteger aquelas boas expressões que, por azar, são vítimas da fúria dos inventores de erros. A vida dá muitas voltas e não tenho tempo para tudo. Mas não resisto a partilhar este achado: há quem não aceite o nome português da velhinha Volta à França! Há quem ache que aquele acento ali no meio é erro…

Bem, tudo aconteceu num recanto perdido pelos subúrbios da Internet, num postal de Facebook que entretanto foi apagado — e tenho pena que o tenha sido, porque o diálogo era bem ilustrativo de alguns enganos típicos nestas coisas da língua e do que é ou não correcto. Assim, tenho de me socorrer da minha memória.

Então e qual era a lógica de quem achava que aquele acento estava incorrecto? Bem, a lógica era: como não dizemos «a França», não podemos dizer «Volta à França».

Perguntarão agora os meus caros leitores: então, mas não dizemos «a França»? Segundo alguns dos comentadores furiosos, não. Nomes de cidades e países? Tudo sem artigo! Afinal, não dizemos «o Portugal», pois não? Nem «a Lisboa», pois não? Houve até quem dissesse: antigamente gozávamos com os emigrantes por dizerem «Vim da França!». Agora já não podemos gozar?

Pois, não podemos, porque emigrante que diga isso está a dizer muito bem.

Mas porque trago para aqui uma pequeníssima polémica escondida no Facebook a quem ninguém vai ligar (e até já foi apagada)?

Porque é mais interessante do que parece.

Primeiro, o caso é um exemplo de como, às vezes, baseamos as nossas certezas num ou dois casos, sem nunca procurar os casos contrários. E é tão fácil encontrar casos contrários nesta questão — digam comigo: «a Bélgica»! «O Brasil»! (Sim, estive a ver um jogo…)

Ora, essas péssimas certezas dão logo para a gritaria: para o pequeno grupo ali ajuntado à esquina virtual, quem contrariasse a sua certeza era porque não sabia português — ou era um desses linguistas (malandros!) que aceitam tudo. Até aceitam «Volta à França»! (E até aceitam «ajuntado»!)

Em segundo lugar, este erro falso é interessante porque é uma desculpa para reparar neste recanto da nossa língua: o uso dos artigos antes dos nomes dos países (se acha isto aborrecido, está no blogue errado).

Limpemos a mesa: hoje, olhamos só para os países. Esqueçamos cidades e regiões. A questão é, portanto: devemos usar artigo antes do nome dos países? Por exemplo, na frase «O meu país preferido é _ [nome do país]»,  o espaço em branco leva artigo ou não?

Ora, a maioria dos países, em português, leva artigo! Reparemos: «a Alemanha», «a Rússia», «os Estados Unidos», «o Brasil», «a Guatemala», «a China», «a Austrália», «o Zimbabué», «a Índia», «a Suécia», «a África do Sul», «o México», «o Canadá», «a Hungria», «o Equador», «o Japão», «o Irão»… Podia continuar aqui a noite toda.

Dizem-me logo os leitores mais atentos: há excepções, não é assim? Claro. Começamos logo cá por casa: «Portugal». Não usamos artigo… «O meu país preferido é Portugal.» (Curiosamente, o artigo aparece em construções um pouco arrevesadas, como «o Portugal da minha infância»; mas deixemos essas nostalgias para outro dia.)

Que outros países não levam artigo? Os exemplos são escassos, mas temos: «Moçambique», «Angola», «Cabo Verde», «São Tomé e Príncipe», «Timor»…

Reparou naquilo que une todos estes países? De facto, dos países de língua oficial portuguesa, apenas o Brasil e a Guiné-Bissau levam artigo. Enfim, a amostra é pequena, acalmemos os cavalos das extrapolações. Adiante. Para lá dos países que usam o português como língua oficial, há mais países sem artigo: «Marrocos», por exemplo. Ou «Omã», salvo erro (não é nome que use muito). Mais? «Cuba»; «Porto Rico» (não é independente, mas passa)… E uns quantos mais (muitos deles, vá-se lá saber porquê, nas Caraíbas).

Ou seja, temos uma tendência geral para usar o artigo, mas as excepções são muitas e incluem alguns dos nomes de países que mais usamos.

Por fim, temos os casos curiosos de Espanha, França, Inglaterra, Itália… Nestes casos, há variação. É possível ouvir «vivo em Espanha», mas também «a Espanha é um país enorme». Eu diria, sem pestanejar, «vim da França ontem», pondo lá o artigo — mas também podia dizer «há muitos portugueses em França», esquecendo o artigo. Em certas construções, o uso do artigo dá um certo tom mais informal à frase, mas a análise dessa informalidade dependerá muito da sensibilidade de cada um. Seja como for, não estamos perante uma incorrecção como seria, por exemplo, «Volta ao Portugal».

No caso de «Volta à França», o nome é mais usado assim, com acento, embora também encontre, nalguns jornais, o uso de «Volta a França». Curiosamente, pronunciamos sempre da mesma maneira, pois mesmo sem artigo os dois «aa» ali seguidos transformam-se numa vogal aberta. Coisas da língua falada.

Este caso é também um exemplo da tendência para confundir «a língua tal como eu (acho que) a uso» com «a língua como deve ser usada pelos outros». Esta atitude não é (como se arroga) uma defesa da correcção, mas antes uma dificuldade em lidar com a variação. Os casos em que não há variação não levantam problemas — ninguém pestanejou perante os nomes em que usamos sempre ou não usamos nunca o artigo («a Alemanha»; «Portugal», etc.). O problema não é o artigo ou a falta dele: é a variação! Quando há variação, chega sempre alguém com vontade de arrumar a língua numa lógica simplista, uma lógica que não repara nas subtilezas do uso real dos falantes e não gosta de ter várias opções. Quem tem esta dificuldades costuma argumentar: mas é preciso haver uma norma! Pois é, mas a norma tem de admitir a tal variação, sob pena de ser cada vez mais artificial, limitada e distante do uso real. E, neste caso, a norma dá-nos estas duas opções. É a vida!

Esta dificuldade em lidar com a variação (e note-se que a variação existe em todas as línguas e em todas as épocas) também levou, durante muito tempo, a que algumas pessoas criticassem sotaques diferentes — felizmente, hoje, já poucos atacam algo tão simples como a variação na leitura do número «dezoito». 

Já o comentário «Se eu gozava com quem usava isto é porque está errado!» também mostra outra coisa interessante sobre as nossas atitudes perante a língua: as palavras e a sintaxe estão, muitas vezes, associadas a determinados grupos e a nossa atitude perante elas tem muito que ver com essa associação. No fundo, cada palavra ou construção tem o prestígio que tem o grupo com o qual a associamos. É assim em todas as línguas — o problema é que, na cabeça de muitos, a falta de prestígio está associada a um defeito intrínseco, como se dizer o nome sem artigo fosse inerentemente melhor do que a outra opção.

Sim, certas formas ganham estatuto de norma, mas é esse estatuto que lhes dá o ar de correcção e não a sua suposta perfeição ou lógica — ou beleza. (Um parêntesis em relação à beleza: a norma parece-nos mais bela porque é usada, em geral, por grandes artistas da língua. No entanto, em muitas línguas, há poetas e escritores que fazem maravilhas bem longe da norma. É possível fazer coisas bonitas com todo o tipo de material, com todo o tipo de palavras — as que saem da boca do rei e as que saem da boca do camponês. Então quem souber misturá-las com talento…)

Na verdade, já me estou a desviar muito: afinal, dizer «a França» não é um desvio à norma…

A língua não é simples: está cheia de subtilezas, de regras implícitas que cumprimos mas não conhecemos, de cambiantes de sentido e de sabor porque abrimos ou fechamos uma vogal. Dizer isto — e não ir na cantiga de quem inventa erros sem justificação, disparando primeiro e perguntando depois — não quer dizer (bem pelo contrário) que vale tudo. Quem disser «cheguei ao Portugal» precisa de aprender a falar melhor… Já quem disser «Venho da França!» precisa é de ser recebido de braços abertos.

Este texto foi integrado no Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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17 comentários
  • Bom dia! Fiquei surpreso em notar que para vcs portugueses, o uso de “a França” soa estranho! Pois aqui no Brasil é uso mais do q corrente, é corrente e cadeado! Assim como usamos “o Marrocos” e “a Espanha ” tb. Essa crase (ou acento grave, como queiram) passa totalmente despercebida de polêmicas do lado de cá do Atlântico. Aliás, outra coisa q me surpreendeu no texto, foi o uso da palavra parêntesis, com “i” como penúltima letra. Sei q ambas as grafias são corretas, mas o uso do vocábulo “parênteses”, além de ser o uso aportuguesado, é o corrente aqui; vide: https://duvidas.dicio.com.br/parenteses-ou-parentesis/
    Parabéns pelas suas crônicas (ou crónicas, como vcs acentuam por aí), são ótimas.

    • Não diria que soa estranho — terá um certo toque de informalidade em certas construções… 🙂 Muito obrigado e espero que continue a gostar!

  • Bom dia, enquanto lia este texto, também me pus a puxar da memória, e em relação a alguns casos, lembrei-me que costumo dizer “vim DE França” ou “vim DE Espanha”, ou “vim DE Inglaterra”, e não “DA… DA… DA…”. Será que me devo flagelar?

    • Claro que não! Nada de flagelações! Como tento explicar no texto, no caso dos nomes desses países em particular, podemos usar ou não o artigo. Temos as duas opções, ao contrário do que acontece com «Portugal» ou «Alemanha», em que não podemos usar o artigo (no primeiro caso) ou temos mesmo de usar o artigo (no segundo caso). Mas, por curiosidade, acha estranho dizer «A Inglaterra é maior do que Portugal»?

      • E é português correcto. Mas, como explico no texto, no caso destes países também é possível usar com artigo. Afinal, a tendência geral da língua é usar artigo antes dos nomes dos países.

  • No início do texto, para além de referências a países, há referências a cidades. Provavelmente por esquecimento não é referido o caso do Porto, que em algumas variações linguísticas teve direto a ver o artigo integrado no próprio nome: Oporto.

  • Olá Marco, sou das que diz “Vive em França”, “Vieram de França” etc, mas é essencial compreender essa abertura, essas variações que, quanto mais não seja, distinguem os vários grupos. Foi bonita, a forma como terminou este artigo. Gosto sempre de o ler, aprendo sempre qualquer coisa e que bem que sabe a leitura em bom português…! Um abraço de amizade

  • A realidade é que o português é mesmo uma língua difícil. Se eu tivesse de aprender português agora, estaria em grande dificuldade. E não é só pela questão se vim da França ou se cheguei do Brasil. Se vou de viagem à Alemanha estou na mesma situação da volta à França. E ainda temos as crônicas como diz o Jorge Neto, ou o planejar a nossa vida no Brasil ou ao invès planear a vida por aqui que tem um tom andarmos pelo ar em vez de termos os pés bem assentos em terra.
    Um abraço Marco e continua com estes artigos.
    Um abraço também ao restante pessoal.

  • Como sempre, é muito interessante o que escreve. Aproveito a oportunidade para lhe pedir que esclareça estas três situações: 1ª.- é agora vulgar ouvirmos dizer gerações, fechando o primeiro E (ge); 2ª.- é frequente ler estas duas formas: “chegar até o fim” e “chegar até ao fim”; 3ª.- é ainda muito frequente se ler e ouvir “eu sou um dos que faço” e não “eu sou um dos que fazem”.
    Cordiais saudações e antecipadamente muito grato pela atenção que puder dispensar ao meu pedido.

  • Prezo bastante os seus esclarecimentos, obrigada por eles. Neste caso concreto, julgo ser aconselhável aceitar a variação e aplicá-la a contento . Há uma linguagem mais coloquial e familiar onde a variação cabe e está em casa. E situações de escrita em que o artigo compromete um pouco a beleza do fraseado. É também uma questão estética:).

  • Grata pelos seus comentários, pois enriquecem quem os lê. Continue a fazê-lo, pois ” nós” continuaremos a lê-los.

    • Acho que o MARCO move-se com muito à vontade nos meandros da língua. Por vezes estão dois indivíduos a discutir muito acalorados sobre uma questão na qual ambos querem ter razão. Cada um acha que assim é que é. Quando afinal os 2 têm razão. Pode-se dizer das 2 formas, o que prova que a língua é mais tolerante e mais sábia que os falantes. Acontece muito na caça aos pleonasmos (uma questão de que já se ocupou superiormente o Marco) . Há quem veja pleonasmos por todo o lado – está de moda (ou na moda? creio que ambas as expressões são legítimas) – esquecendo -se que uma das exigências da língua é a CLAREZA e há pleonasmos que são exigidos por essa virtude ( e agora sim! exigência – é o tem de ser), da língua. É o caso do verso de Camões “Vi, claramente visto” sobre o fenómeno boreal do fogo de San Telmo, sempre que se passa nos trópicos. Se não fosse assim, a língua ficava reduzida ao boletim meteorológico por outras questões além dos pleonasmos. Bem haja quem muito sabe da língua que todos falamos

  • E o desaparecimento veloz dos conjuntivos? Tenho uma grande dificuldade em aceitar essa tendência para a perda de um modo, mas parece que está a instalar-se a sério…
    Que me diz?
    MJ Seixas

  • O galego da Galiza é a mesma língua que o português de Portugal. O nome de Portugal tem a mesma raiz que o nome da Galiza… 🙂

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