
Já há algum tempo que não me dedico ao meu desporto favorito: defender boas expressões portuguesas dos ataques sem piedade de quem gosta de inventar erros. E porque volto à liça neste dia? Porque ontem ouvi alguém a defender que a expressão «voltar atrás» é erro.
Há mesmo muita gente convencida de que basta arranjar uma lógica apressada para declarar esta ou aquela expressão como erro de português — mesmo que todos os falantes usem tal expressão sem pestanejar. Já ouvi quem considerasse erro a expressão «na senda de» porque «senda» quer dizer «caminho» (pois…); outros chamam estúpido a quem usa a bela construção «não há nada» — e há ainda quem corrija todos os pobres portugueses que dizem «queria um copo de água, por favor».
Ainda há uns dias atrevi-me a perguntar a uma senhora que corrigiu o meu «queria um sumo» se achava mesmo que a expressão era erro. Resposta? «Claro! “Queria” está no passado! Se quer o sumo agora, tem de usar o presente.» Calei-me. Senti-me atropelado por esta lógica impecável. O que vale é que somos todos gente civilizada — e mesmo tendo eu feito o pedido no pretérito imperfeito, o sumo apareceu em cima da mesa no presente do indicativo.
Pois, ontem, aconteceu-me esta: encontrei alguém que considera a expressão «voltar atrás» um exemplo do mau uso da língua portuguesa.
Porquê? Porque, enfim, se estamos a voltar só podemos estar a voltar atrás. Logo, «voltar atrás» é um pleonasmo.
O que dizer perante isto? Podia começar a argumentar. «Ah, olha que não: eu posso voltar atrás, mas também posso voltar para casa dos meus pais, voltar para o país onde nasci…» Mas não vale a pena. A lógica da batata não morre à força de mais batatas.
O que posso antes dizer é isto: a expressão «voltar atrás» faz parte da nossa língua — e é tão portuguesa como:
- «não há nada»
- «para além disso»
- «vou ali e já venho»
- «da boca para fora»
- «uma amiga minha»
- «um sorriso nos lábios»
- «tomar um café»
- «um barco à deriva», etc.
Onde fui buscar esta lista? Já vi estas expressões condenadas sem apelo nem agravo por este ou aquele especialista instantâneo. O que estes especialistas fazem é isto: pegam num qualquer capricho de ocasião e alçam-no à categoria de facto da língua (ou então pegam no capricho de alguém que criou uma lista espertalhona e a enviou a todos os contactos).
E isso, meus caros, serve apenas para nos irmos irritando uns aos outros e para umas quantas almas sentirem no seu íntimo quão superiores são aos pobres falantes que dizem «voltar atrás» e «queria um copo de água».
Em conclusão: «voltar atrás» não é um erro de português. Aliás, experimentem lá tirar a palavra «atrás» das seguintes frases:
- «Agora já não volto atrás.»
- «Ele não volta atrás com o que prometeu!»
- «Voltar atrás no tempo é impossível.»
Estas frases sem a palavra «atrás» são uma dor na língua, não são?
Toca a caçar os erros verdadeiros (que são muitos e variados) — mas que ninguém tente eliminar expressões inocentes da nossa língua só porque acordou maldisposto um belo dia. (E, já agora, não basta gritar «redundância» para encontrar erros…)
Caro Marco, blogue sempre afiado, útil e divertido. Mas não entendo por que há quem considera “um copo de água” errado. Sim, sei que para cada erro desses cria-se um sistema lógico (bisonho) próprio e distinto dos demais, mas este pra mim está misterioso. Ainda não tive o prazer de ler teu livro se tem essa questão lá, mas, como dizemos no Brasil, “dá uma palhinha” pra nós?
forte abraço
Por acaso, neste caso o erro seria o “queria” eu vez do “quero” :). Mas, sim, também há gente que se queixa do “copo de água”, como descrevo aqui: https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/obrigada-copo-de-agua-erros-de-portugues/
Opa, de fato, a questão do “erro” é o tempo verbal mesmo.
Mas penso já ter ouvido algum sábio repreender-nos (os inaptos/ineptos mal-falantes do português) por dizer “um copo de água” e não “um copo com água”, pois afinal não se poderia produzir um copo com água (pelo menos líquida não).
Lembro-me de um colega da informática revoltado com a dupla negação em português, era uma redundância! Para quê isso, se apenas uma negativa basta, como no inglês? (apesar de no inglês coloquial ocorrer dupla negativa também..) O pobre colega permaneceu ali, combatendo seus moinhos de vento, enquanto todos seguiam dizendo “não estou entendendo nada”…
abraço!
Se ele soubesse que as redundâncias são absolutamente essenciais ao funcionamento da língua… Se as línguas não fossem muito redundantes, qualquer mínimo erro iria impedir a compreensão da mensagem. Um abraço!
Caríssimo Amigo Marco Neves, com sumo prazer me habituei, de há uns tempos para cá, a ler-lhe os textos que, feliz e oportunamente, solicitei remetesse para o meu endereço electrónico.
Hoje, a expressão – portuguesissimamente popular – ”voltar para trás”, ocupa-lhe o comentário, e bem.
Nada obsta a que se a use, como fazem os verdadeiros criadores da Lusa Fala, os portugueses ”’sem canudo”’, o chamado ‘povo’. Longe iriam os controversores se, a cada passo e em cada circunstância, lobrigassem ”’erros”’, ”’redundâncias”’ (que bem usou o termo, Dilecto Amigo, substituindo-o ao equivalente étimo grego ‘pleonasmo’ – ”pleonasmós, ou” – ‘superabundância, excesso, amplificação, exagero, circunlóquio, …, redundância’ ), em cada canto, rua ou esquina do nosso belo Portugal, infelizmente tão inçado de falantes mal-escreventes e, pior, nada entendedores da prosódia popular, da sua simplicidade, dita e propagada cada dia. Bem-haja. Um forte, solidário abraço, como incentivo e apoio – modesto, mas sincero – meu.
Olá Marco Neves, há quem aponte o erro em “um copo de água” ao uso da preposição “de” em vez da preposição “com”. Por costume prefiro com “de”. Quanto ao emprego do verbo no Pretérito Imperfeito entendo como uma forma de suavizar um pedido ou ordem, como que a quebrar a arrogância do Imperativo.
Nem os pleonasmos nem as redundâncias são erros.Apenas figuras de estilo que dão ênfase âs ideias que queremos reforçar.
Gostaria saber quanto custa o livro e como adquiri-lo.
Alda Silva
Muito bem Marco! O eterno “queria””, já não quer” põe-me de cabelos em pé, mas levam sempre a lição do Imperfeito de cortesia… e às vezes até digo que os franceses usam o condicional “Je voudrais”….
Agora “o voltar atrás” ser erro é anedótico e nunca ninguém me disse tamanho disparate! Volto muitas vezes atrás para buscar alguma coisa, mas quando volto para casa ou para Portugal, nunca estou a voltar atrás. Enfim…. jã “o copo de água” é clássico….mas tal como se bebe um copo de vinho também se bebe um copo de água!
Parabéns pelo que escreve.
Abraço
Concordo…😌
Caro Marco
Agradeço-lhe pelo facto de este seu texto me ter feito voltar atrás no tempo e recuperar da minha juventude um célebre discurso proferido por um daqueles tipos que botam sempre faladura.
Transcrevo-lhe aqui um extracto, ficando assim o Marco com material para distribuir pelos puristas seus conhecidos, dando-lhes com isto a possibilidade de fazerem algo de útil à língua portuguesa.
Cá vai:
«Caríssimos consócios, minhas senhoras, meus senhores.
Não há nada como realmente…
Mas mais vale um homem todavia nunca do que, sem comparação, jamais em tempo algum.
Não só, mas ora essa é boa!, mas até mesmo porque enfim.
Eu, porém, num caso destes não deixaria de dizer: – Homessa! (…)»
E por hoje fico-me por aqui, que já são horas de ir andando.
(Mas então fico-me por aqui ou vou andando? Mau, mau, que isto ainda vai dar problemas…)
Concordo com tudo o que disse. São, sem dúvida, expressões bem portuguesas. E não vale a pena sermos mais papistas que o papa…
Já agora, aqui vai uma dúvida: alguém que é indicado para integrar uma escala é “escalado” ou “escalonado”? É que “escalado” lembra-me sempre o bacalhau…
Ũa pergunta pro autor: Cal será a língua falada em Marte?
Hum, não estou a ver o sentido da pergunta. Não há por lá ninguém para falar…
Cal “será”? Disque o Elon Musk vai enviar gente pra lá nũa década e a NASA tamém tem projetos pra enviar ũa tripulaçom a Marte arredor do 2030.
Polo tanto, cal achas que será a língua falada em Marte nũus 100 anos, no século XXII? Será o inglês? Será o marcião? Será o galego?
Com certeza, em Marte será o marciano…
Pois então, que dizer,deste português…dias sem fim…nas nossas televisões,onde milhões poêm seus ouvidos?Ex.A GNR foi chamada para “apanharem”o ladrão.65.000 benfiquistas estiveram no Estádio da Luz a “assisterem”ao TTT/RRR…etc…ensinem Português a estes caçapos…na escola!
Se 65000 benfiquistas estiveram no estádio a “assistirem”, estamos perante o infinitivo flexionado, que não é necessariamente erro (embora no caso possa ser algo informal).
“Queria um copo de água…” O Pretérito Imperfeito do Indicativo é substituto do Condicional tal como o Presente do Indicativo é substituto do Futuro. O que quero dizer se empregar essa expressão é: “Quereria um copo de água se fizesse o favor de mo servir.” É pois uma formula de delicadeza. Se preferirem a expressão “Quero um copo de água” estamos a empregar o Imperativo puro e duro e não havendo aqui delicadeza nenhuma podemos ainda acrescentar um advérbio para reforçar a ideia. Ex.: “Quero um copo de água imediatamente!” (Com voz forte) Será assim que os ignorantes indelicados preferem? Essa gente também nunca poderá afirmar: “Acabo o serviço às sete horas”. Terá de dobrar a língua e dizer: “Acabarei o serviço às sete horas”
Caro Marco Neves,
Não posso concordar mais com o seu posicionamento não normativo quanto às questões da língua. Parece-me, no entanto, que que há que fazer uma distinção entre linguagem falada e linguagem escrita. Vem isto a propósito da citação da expressão «para além de», à qual eu, revisor, tendo em atenção a “economia” do texto, costumo amputar o «para», por me parecer desnecessário. A menos em situações de âmbito geo-topográfico; exemplo: «Para além daqueles montes».
Obrigado por esta sua tão útil demanda!
Caro Marco,
Concordo com praticamente tudo o que você disse. Só há uma expressão, «Voltar atrás no tempo é impossível», em que, na minha região, se tirarmos o atrás, ele não faria falta. Assim, podemos dizer tranquilamente “Voltar no tempo é impossível”. Mas isso é detalhe!
Parabéns!!
Sou estreante neste site, que descobri há relativamente pouco tempo e, até agora, apenas como leitora. Hoje gostaria de colocar uma questão, dizendo à partida que concordo plenamente com os esclarecimentos dados acima. Mas há casos gramaticalmente próximos que aprendi, de criança, a não proferir, por serem considerados erro: «Sobe para cima da cadeira(muro, banco, escadote…»; «Entra para dentro da banheira, carro, casa…»; «Sai já para fora daí!»;«Desce já para baixo!», entre outros. A língua é viva e é o povo que a cria ao longo dos séculos, no que não tenho dúvidas. Porém, foi ‘normalizada’ alguma(s) vez(es) e continua a sê-lo, mesmo que, por vezes, ‘a martelo’, como neste último acordo ortográfico, que não utilizo e considero redutor e errado.
Muito obrigada.
Maria Santos
Excelente artigo. Estava mesmo na dúvida do voltar atrás.
Aqui no Brasil, onde falamos o português, um pouquinho diferente de Portugal. Também retiramos e ou colocamos erros onde não existem.
Abraços
Caro Marco, constantemente me deparo com profissionais (inclusive jornalistas) que utilizam (minha mandata ou mandata) para fazer referência ao mandato de parlamentares do sexo feminino, em diversos artigos na Folha de São Paulo, jornal impresso, há essa referência, estou com bastante dúvida, você poderia por gentileza esclarecer?
Forte abraço!!!
Bastante interessante este “desporto”, acho que vou começar a praticá-lo.
Outras expressões que vejo várias pessoas reclamarem por considerarem erradas, como “grande maioria” e “muito pouco”.
Maioria é mais da metade, se alguém ganhar uma eleição com 51% dos votos é a maioria, mas não é a grande maioria, só seria se tivesse ganhado muito mais do que todo o resto, algo como 95%.
“Se é pouco, não é muito”, o argumento mais clássico que vejo por aí, mas muito não é só quantidade, mas também é intensidade, senão “muito lindo” significaria vários lindos.