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Como traduzir a palavra “impeachment”?

A tradução não é uma actividade fácil. Basta pensar numa palavra que anda nas bocas do mundo: “impeachment”.

Nas notícias destes últimos dias, vemos como a Câmara dos Representantes dos EUA anda a interrogar várias testemunhas num processo que, em inglês, tem o nome de “impeachment”. Quando os jornais portugueses falam do processo, costumam usar a palavra inglesa ou, em alternativa, usam “destituição”. Será esta a melhor alternativa?

O impeachment é um conceito próprio do sistema constitucional dos EUA. Quando estamos perante conceitos jurídicos particulares de um país, o uso da palavra original não é descabido. Em 2007, quando os pais de Madeleine McCann foram constituídos arguidos, vários jornais ingleses mantiveram a palavra “arguido” em português ao redigir as notícias sobre o caso. Afinal, um arguido não é um simples suspeito, mas também não é um acusado. É uma figura particular do nosso sistema penal, de difícil tradução para outras línguas. Tanto no caso de “arguido” como de “impeachment”, o facto de fazerem parte de um sistema jurídico diferente é relevante e o uso da palavra original ajuda a indicar isso mesmo.

O impeachment é muito importante no sistema constitucional dos EUA e, se virmos bem, não corresponde ao nosso conceito de destituição. Quando o impeachment de um presidente é aprovado pela Câmara dos Representantes, o presidente não é destituído. Já dois presidentes viram o seu impeachment aprovado: Andrew Jackson, em 1868, e Bill Clinton, em 1998. Em ambos os casos, a Câmara aprovou o impeachment, mas o presidente cumpriu o mandato até ao fim.

Então, para que serve este processo de nome a fazer lembrar um pêssego? Serve para censurar o presidente e iniciar um julgamento que pode levar, então sim, à sua destituição. O julgamento ocorre no Senado e é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. A acusação é apresentada pela Câmara dos Representantes e o presidente tem direito a defender-se. Os senadores servem de júri. Se, no final do julgamento, dois terços dos senadores condenarem o presidente, este é destituído. Nem Andrew Jackson nem Bill Clinton foram condenados.

Ora, em português, temos uma palavra que traduz bastante bem aquilo que a Câmara dos Representantes anda a preparar: trata-se da palavra “impugnação”.

Se procurarmos o significado do verbo “impugnar”, vemos que significa “1. Pugnar contra; opor-se a (ex.: impugnar uma ideia).” e ainda “2. Colocar em causa a validade ou legitimidade de algo, mediante argumentação (ex.: impugnar uma multa rodoviária; impugnar um resultado eleitoral).” (Estas são as definições que encontrei no Dicionário Priberam.)

A impugnação de eleições não implica a sua anulação: essa anulação deve ser decidida por um tribunal. É precisamente o que acontece com a impugnação do presidente dos EUA: a Câmara dos Representantes coloca em causa a legitimidade do presidente, censura-o, defende a sua destituição — mas não o destitui.

Haverá necessidade de distinguir a impugnação da destituição ao traduzir “impeachment”, se o objectivo do processo é, de facto, a destituição? Estou convencido que sim. Quando, dentro de semanas, a Câmara dos Representantes votar a impugnação de Donald Trump, não estará a votar a destituição. Será difícil explicar, numa notícia portuguesa, o que se está a passar se a tradução escolhida for “destituição” ou mesmo “processo de destituição”. Há outras opções possíveis (por exemplo, “acusação”), mas nenhuma me parece tão precisa como “impugnação”.

Tendo em conta que o Partido Democrata controla a Câmara dos Representantes, o impeachment de Donald Trump é bastante provável. Já a sua destituição pelo Senado, controlado pelo Partido Republicano, é uma hipótese muito pouco provável. Vemos aqui, na prática, como o impeachment não corresponde à destituição — corresponde àquilo que podemos chamar “impugnação”, um passo necessário, mas não suficiente, para que um presidente dos EUA seja destituído.

E, pronto, agora é agarrar nas pipocas e ficar a ver. O filme tem telefonemas em restaurantes na Ucrânia, agentes russos a rondar e interrogatórios brutais nos EUA, qual thriller político de argumento absurdo… Até já há um título: Impugnação.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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11 comentários
  • Aqui, no Brasil, onde já tivemos dois presidentes que sofreram ‘impeachment’ (um, de forma justa; outra, injustamente), o povo e a imprensa costumam usar a palavra inglesa em sua forma original. Mas, quando esta última quer utilizar um termo em Português, usa ‘impedimento’.

    • Sim, já tinha ouvido a versão “impedimento”. Na verdade, parece-me correcta para o caso do Brasil, em que o presidente fica de imediato impedido de exercer as suas funções até ao final do julgamento (sendo então demitido definitivamente, se condenado), em contraste com os EUA, em que o presidente continua no cargo, mesmo depois do “impeachment”, sendo demitido em caso de condenação no julgamento no Senado. Ou seja, no caso dos EUA, o “impeachment” não implica impedimento (admito que possa estar a interpretar mal o uso desta palavra no Brasil). Muito obrigado pelo comentário!

    • no último processo no Brasil julgo que ouvi alguns deputados usar a palavra “impítim” 🙂

    • Ambos impedidos de forma justa, conforme rito definido pelo Supremo Tribunal Federal, em ambas as ocasiões. Quem diz o contrário o faz por militância pura e simples.

  • Creio que a palavra Destituição seja a melhor opção, acho que essa foi a opção que a língua francesa adotou, se não estou enganado.

  • A palavra impedimento se usada para tradução do “impeachment “ soaria como termo futebolístico , pois por aqui no Brasil, é o famoso “off-side”. O “impeachment “, no original, permanece como a palavra de uso corrente .

  • «Nas notícias destes últimos dias, vemos como a Câmara dos Representantes dos EUA anda a interrogar várias testemunhas num processo que, em inglês, tem o nome de “impeachment”.»
    Pelo texto entende-se bem que se está a referir ao que se passa nos EUA mas creio que ficaria melhor especificar que se trata do Inglês falado e escrito nos EUA já que no RU a palavra não é utilizada exactamente com o mesmo significado.

    • Obrigado pela mensagem. Mesmo no Reino Unido, quando há referência ao processo dos EUA, a palavra usada é “impeachment”. Julgo que é claro no texto que estou a referir-me ao processo constitucional dos EUA.

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