Admito: tenho andado arredado das crónicas, que em tempos chegaram a ser semanais. A causa é boa (ou escolho interpretá-la como boa). Tenho tido muito para fazer nos tempos livres (que já não são muitos): vídeos, entrevistas e sessões em público, a falar do que gosto de falar. Ah, e tive problemas com a GNR, o que também não ajuda.
Pois hoje decidi-me: vou escrever uma crónica para vos contar o que me aconteceu há poucas semanas. Bateram-me à porta dois guardas, às dez da noite, com os meus filhos admiradíssimos, sururu no corredor, a minha mulher zangada.
Que crime cometi? Que disparate disse eu em público que merecesse a guarda à porta?
Vou contar tudo — e, no fim, prometo que tenho algo a dizer sobre a língua.
Pois bem. Tudo começou num final de tarde de Novembro, depois de um dia longo de aulas, já noite cerrada. Desci as escadas da faculdade até às catacumbas, entrei no carro, liguei-o, saí dali cansado, desejoso de chegar a casa.
Cheguei muito mais tarde do que pensava. Tive um acidente. Os pormenores do caso ficam para os animados serões em que os peritos das seguradoras se encontram para contar histórias — digo apenas que tanto eu como o homem que vinha no outro carro ficámos bem, não nos aborrecemos e ainda trocámos números de telefone, porque nunca se sabe o que fazem os peritos.
Diga-se ainda que perdi os óculos durante uns minutos, até um dos famosos populares que se ajuntam sempre nos acidentes os ter encontrado no chão do carro. Justifico-me: procurar óculos sem óculos é muito difícil — e ainda mais depois de um acidente! (Acrescento ainda que a minha impressão geral dos tais populares ajuntados em redor de um acidente melhorou muito com o caso; as pessoas tornam-se prestáveis e muito simpáticas quando é preciso ajudar.)
Reboques chamados, telefonemas terminados, formulários assinados, vi-me numa oficina com o carro incapacitado, pronto a ser reparado em poucos dias. O seguro enviou-me as informações necessárias para levantar um carro de substituição. Nada a dizer. Tudo funcionou bem. Chatices da vida. Lá fui para casa, onde a minha família queria saber tudo ao pormenor. Tive sorte, foi o que foi.
Mas a sorte cansou-se.
A verdade é que a reparação era fácil, mas faltava uma peça. A fábrica da peça em França mandou informar que agora mete-se o Natal e depois o Reveillon. Talvez lá para Janeiro.
Vem o Natal e o fim do ano e o carro de substituição tem de voltar à base, que as seguradoras ajudam, mas não convém exagerar (pelo menos é o que diz a apólice).
Fiquei sem carro. Num daqueles acasos que provam que a sorte pode afastar-se, mas tem recaídas, e às vezes até gosta de dançar com o azar, um familiar cujo nome agora não posso dizer ficou com a carta suspensa durante um mês (uma questão de velocidade em Lisboa e uma carta que ficou por abrir até vir a carta mais a sério).
Ele tinha carro, mas não tinha carta. Eu tinha carta, mas não tinha carro. Perfeição.
Todas as manhãs passei a levar mais pessoas dentro do carro. Se calhar, até poderia começar a fazer isso mesmo quando todos temos carta. Há males que vêm... (Já sabem o resto.)
Passou um mês, a carta voltou, fiquei, por fim, dois meses depois do acidente, sem carro ao dispor. Não faz mal: a verdade é que o problema é a nossa dependência da máquina, não é? A oficina tinha boas notícias: no final da semana, já deveria ter o carro pronto. Respirei fundo.
Ora bem, dois meses depois do acidente, o meu vizinho bate-me à porta a dizer que está a GNR na entrada do prédio a tentar encontrar um Marco Neves. (A razão por que não me bateram logo à porta é banal, mas não tenho tempo.) O vizinho pergunta-me se pode mandar subir ou se preciso de tempo para fugir (estou a exagerar um pouco).
Enquanto o elevador me trazia os guardas, pensava furiosamente: o que seria aquilo?
Depois de saírem do elevador e fazer os cumprimentos da praxe, comigo à porta já nervoso, os dois guardas, muito simpáticos, olharam-me com cara de caso:
«Que carro anda a conduzir?»
Embasbaquei...
«Bem, por acaso ando a conduzir o carro de [censurado], mas agora não tenho carro nenhum...»
«Então, não estava com o carro [e aqui dizem a matrícula do meu carro] hoje à tarde na Ponte Vasco da Gama?»
«Não...»
«Mas não é a matrícula do seu carro?»
«É...»
«E onde está o carro?»
«Na oficina...»
«Pelos vistos, não está, porque provocou um acidente na ponte e fugiu.»
Portanto, num dia em que estava sem carro consegui provocar um acidente e fugir. Tudo sem sair de casa!
Conseguimos falar com os responsáveis da oficina mesmo àquela hora. As conversas foram intensas. O que se passou? O que estava o nosso carro a fazer na ponte? Que acidente foi aquele? Andavam a usar o nosso carro? Afinal, já anda?
Os guardas coçaram a cabeça, mas perceberam que não tinha sido eu. Explicaram-nos que tinha saído um pneu do carro, que foi bater num camião e depois caiu no rio. As câmaras da ponte mostravam que o carro foi rebocado, mas o condutor (que tudo indicava, pelos registos ao dispor, que seria eu) não ficou à espera para preencher a declaração amigável. O camionista chamou a polícia, claro.
Os dois guardas deram-nos conselhos: que fôssemos à oficina, que pedíssemos para ver o carro e, depois, que disséssemos ao condutor para ir ter com eles o mais rapidamente possível.
Preenchi uns papéis, pediram-nos o número da oficina, foram-se embora. Os meus filhos estavam com cara de quem assiste a um filme demasiado interessante.
Não fazíamos ideia do que se teria passado. Andaria alguém da oficina a passear o carro para ele não perder o hábito? Teriam copiado a nossa matrícula? O universo é uma simulação?
No dia seguinte, logo de manhã, estávamos na oficina. Já todos estavam à espera, com sorrisos nervosos, e lá nos explicaram o que se passou...
Foi isto: o carro estava pronto, mas era preciso mudar os estofos do banco (os air bags do meu banco dispararam; nem sabia que havia air bags ali...). Foi necessário levá-lo a outra oficina, na Margem Sul. O funcionário foi devagar pela ponte, mas um pneu soltou-se.
Neste ponto do relato, perguntei: mas soltou-se porquê?
Não sabiam. Talvez consequências do primeiro acidente que não tinham sido detectadas.
Adiante. O pneu foi parar longe, o condutor encostou o carro à berma, veio um reboque enviado pela concessionária da ponte, que o levou até à estação de serviço. O condutor não viu nenhum acidente, pôs o pneu sobressalente e avançou para ir pôr os estofos novos no meu carro. Apanhou um grande susto, mas já tinha passado. O pneu estaria no rio; haveria que substituí-lo; trabalhava numa oficina, não seria difícil...
A Zélia e eu estávamos pasmos e não propriamente felizes (ter a GNR a bater à porta é sempre de assustar). Mas de quem era a culpa? A situação parecia uma sucessão inacreditável de azares (o pneu que se solta; o camião que levou com o pneu bem longe do local; o reboque que aparece de imediato; a hora tardia a que tudo aconteceu, que não aconselhava ir a correr contar ao cliente que o carro tinha ficado sem pneu). Ao mesmo tempo, a sorte tinha sido muita: soltou-se um pneu e ninguém se aleijou...
Tudo se resolveu. O condutor foi à GNR, assinou o que tinha a assinar (depois de ouvir alto e bom som que não se sai do local de um acidente, ao que ele contrapôs que só soube que tinha tido um acidente quando o cliente telefonou a queixar-se de ter dois GNR à porta), as seguradoras lá se entenderam (neste caso, foi a seguradora da oficina que teve de pagar os estragos), o carro ficou bom, a oficina pediu muitas desculpas e, finalmente, tenho de novo o meu carro, agora com pneus novos (e, se houver alguma consciência nos carros — sabe-se lá! —, com medo de sair à rua).
Prometi, no início, dizer alguma coisa sobre a língua, mas confesso que já não me lembro o que era. Falo tanto do português e das outras línguas, mas aqui não tenho nada a dizer sobre o tema. Vou torcer um pouco o parafuso: quando estamos a conversar com a GNR à porta, com a oficina que nos anda a tratar do carro, com as seguradoras baralhadas com tanto incidente num só automóvel — não pensamos na língua. Pensamos nos problemas e em como resolvê-los, mas não na língua que estamos a usar. Enquanto isso, estamos mesmo a usar a língua intensamente, com as regras e as palavras e toda a complexidade que permite explicar a um guarda que, sim, o carro é meu, mas não fui eu que estava na ponte e, não, não faço ideia do que se passou.
Estamos sempre a usar a gramática e as palavras mesmo sem pensar nelas. Isto é assim para todos: para quem fala da língua todos os dias e para quem deixou de pensar no tema no dia em que saiu da escola.
O que acabei de dizer é mais importante do que parece, mas não digo mais nada. Só mais isto: o dia-a-dia ainda é mais complicado do que a língua.