Ouvir galego pela primeira vez
Num texto antigo, descrevi como foi estar com pessoas que ouviam o galego pela primeira vez.
Por vezes, até confusões técnicas como alojamento de websites, endereços web e outros que tais nos trazem recordações antigas…
Comecei a escrever na página Certas Palavras em 2013, com o sistema Wordpress. Por causa dos textos que por aqui fui deixando, conheci muitas pessoas novas e interessantes, aprendi tanta coisa, fiz viagens, ganhei o vício de escrever: durante muitos anos, escrevi muito — e ainda escrevo, embora a um ritmo mais espaçado. Entre 2013 e 2024, publiquei uma média de quase sete artigos por mês.
Os meus livros saíram desta página — e muito do que faço para lá das aulas começou por aqui.
Nada disto teria sido possível sem os assinantes por e-mail. (Muito obrigado!) Para gerir a lista, que cresceu bastante (está a três assinantes de chegar aos 12 000), usava o Mailchimp, um sistema muito bom, mas com custos elevados. Comecei à procura de alguma forma de enviar os artigos aos assinantes sem pagar tanto.
Em 2022, decidi passar para o Substack. Não só era gratuito, como poderia receber apoios dos assinantes que assim o desejassem (o que sempre ajuda a manter o vício de escrever).
Descobri que o sistema funciona muito bem. Devagar, fui deixando para trás o Wordpress. Hoje, o processo culminou na passagem do endereço certaspalavras.pt para a página no Substack. O antigo sítio ficou arquivado aqui.
Nada muda, na verdade: continuo a escrever artigos e a enviá-los aos assinantes — mas o processo de transferência fez-me recordar os primeiros tempos da página e procurar o primeiro texto que publiquei por aqui.
Era um texto sobre a Galiza com um título que falava da relação erótica entre línguas (ui). Quem acompanha a página há mais tempo sabe que o tema é particularmente importante por estas bandas (a Galiza, não a relação erótica).
Aqui fica, quase 12 anos depois. Um texto em que falo de portugueses (e não só) a ouvir e a espantar-se com o galego.
A relação erótica entre as línguas
Publicado no dia 19 de Maio de 2013
Pois que com este título as “línguas” que muitos imaginam serão outras — mas, não, este artigo tem mesmo a ver com línguas-idioma e não com línguas-órgão.
Na sexta-feira, fui assistir a uma conferência de Manuel Rivas, no Instituto Cervantes, por ocasião do Día das Letras Galegas. (Já agora, o “í” está correcto, porque este nome está em galego, por mais português que possa parecer aos desprevenidos.)
Fui com alguns alunos e, para alguns, uma das curiosidades da conferência foi ouvir alguém a falar em galego, aquele idioma rumorejante que para um português soa a português bem nortenho misturado com um não sei quê de Brasil e de floresta brumosa e de vogais bem mais cheias do que as nossas.
Pronto, temos de admitir: soa também muito a português falado por um espanhol, mas isso é porque temos os ouvidos pouco treinados. No final da conferência, um aluno mexicano disse-me que nunca tinha ouvido ninguém a falar galego e que, por momentos, pensou ser uma tentativa frustada de falar português. Mas, felizmente, alguém o desenganou rapidamente…
As histórias que Manuel Rivas contou ficarão para quem lá esteve. Fomos desde as agruras da Cultura desde o Iluminismo até às agruras dum vedor honesto à procura de água em volta da casa dos pais do escritor.
Mas vamos então à tal relação erótica entre línguas. Os alunos de uma das disciplinas que dou estão a fazer um trabalho de investigação sobre tradução. Uma das alunas (uma senhora cultíssima com quem aprendo muito mais do que ensino) está a estudar, para esse trabalho, a auto-tradução e, assim, perguntou a Manuel Rivas que sensações tinha ao traduzir os seus próprios textos para castelhano.
Manuel Rivas contou um episódio curioso relacionado com um dos livros que auto-traduziu, para explicar como tinha sido difícil traduzir um episódio concreto, que só lhe saía bem em galego, por ser a língua em que tinha as recordações em que se baseara para o escrever. Mas logo explicou que, depois de deixar o capítulo repousar um pouco, a tradução saiu-lhe naturalmente. Continuou a dizer que, para ele, a relação entre línguas “é uma relação erótica, não competitiva, uma relação sinestética e que alarga o olhar” (cito de cor).
Ora aqui está uma frase que não deixa de ser saborosa para um tradutor: trabalhamos no local onde as línguas têm relações eróticas e o que fazemos alarga o olhar (a “mirada”).
Ouvir Manuel Rivas também alarga a mente e o olhar — e alarga-nos o ouvir, com as cócegas que faz nos ouvidos uma língua tão próxima da nossa como o galego.