Perder medos e línguas em França
Perdi um medo em França — e o meu filho também (30 anos depois). Também falo de línguas, claro.
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Ali em meados dos anos 90 do século XX, fui com os meus pais e irmãos a Paris. A viagem deu-me memórias, livros, histórias para contar, mas também me curou de um medo. Aliás, não foi a viagem: foi mesmo a Torre Eiffel.
Agora, numa nova viagem a Paris, aconteceu algo parecido ao meu filho mais velho — mas a culpa foi das línguas de França!
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Algures na minha infância, estava em casa a olhar para a televisão, onde passava uma qualquer telenovela cujo nome não me lembro (nem quero).
Na telenovela, havia um elevador que caía. Personagens morriam, espatifadas no fundo do poço do elevador. Um medo nascia numa criança.
Fiquei com terror a elevadores. Preferia subir cinco lanços de escadas a entrar num elevador (era bom para a saúde, este medo). Preferia não ir a casa dos meus amigos a ter de arriscar a vida na geringonça do demo.
Pois, nessa viagem a Paris, queria muito ir à Torre Eiffel. Queria ver Paris de cima. Os meus pais levaram-me lá, compraram os bilhetes e viraram-se para mim, sem fazer grande escarcéu:
«Ou vens ou ficas aqui em baixo.»
Fui, claro. Suores frios, algum medo, os metais da torre a passarem-me pelos olhos com a cidade atrás, o terror a dissipar-se... A cura!
Pois, há poucas semanas, aconteceu algo parecido com o Simão. Não foi, no entanto, na Torre Eiffel e o problema não eram os elevadores. Ah, mas estávamos a caminho da Torre Eiffel.
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Não, para esta viagem (a de 2025) não tinha a desculpa que tive para muitas viagens que fiz nos últimos tempos. Vou a um congresso, vou dar uma conferência, vou participar num evento ou noutro — e aproveito para conhecer a cidade ou as cidades em redor, pondo aquele ar inocente de «turista? eu?».
Não, desta vez teria mesmo de ir como turista: sem nenhuma desculpa concreta, sem nenhuma razão para avançar, mas com vontade de ir em frente, até à Torre Eiffel, para mostrar o monstro aos meus filhos, para lhes dar a oportunidade de conhecer a cidade mais conhecida do mundo (estarei a exagerar?), para passarmos uns dias juntos.
A principal razão: queríamos passear na Páscoa, um desejo banal de uma família normal que tem dois filhos em casa e dias de férias para passar.
Não poderia ser num sítio parado (entenda-se, com piscina e sossego), como apetece muitas vezes, por uma razão muito minha. Tenho andado com muita coisa na cabeça, numa lista infindável de pequenos e grandes projectos, aulas e correcções, e outros que tais, que me levariam inevitavelmente a ter sempre o computador à frente se estivesse no doce sossego de um lugar feito a pensar em férias.
O que nós precisávamos mesmo era de uma road trip. Melhor: de uma voyage en voiture (e, sim, eu sei que os franceses também usam road trip, mas não soa tanto a francês, não sei porquê).
Uma viagem de carro obriga-me, primeiro, a conduzir, depois, a mudar de ares — e ainda me dá pretexto para conhecer lugares e línguas e livros.
Portanto, estava decidido: seria uma viagem em viatura.
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Até onde?
Perguntámos aos meus filhos onde lhes apetecia ir.
O Simão respondeu que não lhe apetecia ir.
O Matias apoiou o irmão.
«Pois, mas vamos. Digam lá até onde...»
Depressa começaram a debitar hipóteses: Brasil, disse o Matias. Carolina do Norte, disse o Simão.
«Carolina do Norte? Isso é muito... específico.»
A culpa era de uma série que ele andava a ver.
«Temos de ir de carro. Nada de oceanos pelo meio.»
A Zélia, que não é tão virada para as viagens de carro como eu, e também não morre de amores pelo francês (traumas de experiências estudantis), desta vez, não só gostou da ideia da viagem de carro, como até aproveitou para sugerir:
«E se fôssemos a Paris?»
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No fundo, era onde eu queria chegar, mas sem impor nada à restante assembleia deliberativa. Correu bem.
E queria chegar a Paris porquê? Por nostalgia. Por causa da tal viagem da adolescência em que perdera o medo aos elevadores.
Agora queria voltar a fazer o mesmo, mas com Zélia e descendentes. E já sem medo de elevadores. E com vontade de falar das línguas.
Foi também por isso que convidámos os meus pais — Clara e António, ou Tó — para irem connosco. Descendentes e ascendentes: tudo a caminho de Paris. Por isso e porque era uma oportunidade para passarem alguns dias seguidos com os netos. Afinal, não vivemos longe, mas também não vivemos perto. Umas férias em conjunto sabem sempre bem.
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O plano era repetir o caminho exacto que fizéramos 30 anos atrás, incluindo uma paragem no Futuroscope, um parque temático perto de Poitiers que, nessa altura, me tinha espantado e, agora, espantaria os meus filhos (pensámos nós — e não errámos muito).
Antes de chegarmos a Poitiers, ficámos uma noite no País Basco francês, num pequeno hotel no meio de uma aldeia tipicamente basca.
Quem me segue, sabe que me tenho entretido a criar pequenos vídeos sobre o português e as outras línguas. Nesse hotel, fui à varanda gravar um pequeno vídeo, onde explicava como, há 700 anos, a experiência de viajar de Lisboa a Paris seria muito diferente para quem quisesse reparar nas línguas. Aliás, seria muito diferente para todos e por muitas razões, mas quis centrar-me na experiência linguística (digamos assim). Deixo aqui o que disse nesse vídeo (com algumas revisões):
Como seria viajar pela Europa há setecentos anos?
Estou a fazer uma viagem com a minha família de Lisboa até Paris. As fronteiras trazem mudanças muito marcadas: de Portugal para Espanha, muda a hora, mudam muitas outras coisas — e muda a língua, claro. Depois, passamos de Espanha para França e passamos a ouvir muito mais francês. A língua da escrita passa a ser quase só o francês.
Ora, se nós pensarmos numa viagem parecida há setecentos anos, a experiência seria muito diferente — e nem estou a falar dos meios de transporte ou dos hábitos de viagem. Estou a falar de outros aspectos. Por exemplo, a hora não mudava na fronteira; ia mudando gradualmente pelo território. Cada terra tinha a sua hora.
A fronteira não estava marcada de forma tão clara como está hoje.
Na língua acontecia o mesmo. Entre Vilar Formoso e Fuentes de Oñoro, o que se falava era parecido. O viajante atento iria observar mudanças graduais na língua em toda a área de falares latinos, mas não iria observar cortes tão marcados como hoje encontramos (ou ficamos convencidos de que encontramos) nas fronteiras.
De Lisboa a Paris iríamos ouvindo os falares portugueses a transformarem-se em falares leoneses, depois castelhanos, depois occitanos e depois mais próximos daquilo que é hoje o francês.
Isto é o que os linguistas chamam continuum dialectal, ou seja, um contínuo de pequenas mudanças que, ao fim de alguns quilómetros passam a significar diferenças bastante marcadas, mas essas diferenças não aparecem de rompante na fronteira, mas antes na gradualidade da mudança pelo território.
Claro que pelo caminho entre Lisboa e Paris também encontraríamos casos como o basco, que está fora desse contínuo (é uma língua muito diferente), e também áreas onde as mudanças aceleram e não são assim tão graduais.
Ainda hoje existem vestígios da situação de há 700 anos. Estou no País Basco francês. A fronteira entre Espanha e França está bem marcada nas placas, nos mapas, mas ainda encontramos basco de um lado e do outro. Também encontramos aqui bem perto algum occitano já muito menos falado. E o occitano tem uma ligação muito forte ao catalão, que não se fala aqui na zona, mas fala-se na Península Ibérica.
Ou seja, não há uma mudança tão radical como nós pensamos quando passamos a fronteira de Espanha para França. As fronteiras marcam as expectativas, a escrita, o ensino, mas ainda não apagaram toda a gradualidade linguística da zona onde se falam línguas latinas — e também ainda não apagaram o basco que se fala por aqui. É uma língua interessantíssima, uma língua que não liga às fronteiras entre os estados.
E o País Basco, já agora, é muito bonito.
Para provar o que dizia na última frase, mostrei aquilo que via da varanda no final do vídeo.
Revelo, já agora, que fui interrompido por um vizinho que saiu para a varanda e estranhou a gravação. Fico com vergonha de gravar vídeos com pessoas a ver, principalmente se estiverem de cuecas.
Tive de repetir quando o vizinho se cansou de olhar para a paisagem. Demorou. A paisagem era linda.
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Pois bem, nesse hotel tivemos de decidir onde ficaríamos a dormir na zona do Futuroscope.
Foi aí que as línguas de França nos empurraram para ficarmos num sítio onde o meu filho teria uma experiência importante — onde perderia um certo medo (já explico qual).
Propus ficarmos numa gîte, ou seja, numa casa de turismo rural, o mais perto possível da zona onde há uma transição importante de línguas na França. Ficámos mesmo encostados a uma das pontas do chamado Croissant, onde as chamadas langues d’oc, o occitano, mudam para as langues d’oïl, que incluem o francês.
Cada louco sua mania — e a minha é mesmo a das línguas.
Ninguém, na minha família, se importou com o lugar, até porque não lhes disse que o critério fora muito linguístico. Pronto, na verdade, também foi porque as fotografias da quinta eram lindas e o preço não assustava.
Chama-se Gîte Loft Le Piano / Pays de Joie e é gerida por um casal belga muito simpático.
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Ora, o meu filho Simão tem medo de cães. Ou melhor, tinha. Não sei explicar a razão — nem eu, nem ele, nem a Zélia. Apareceu de um dia para o outro, há uns anos.
Pois, na quinta, havia dois enormes labradores — bem anunciados nas fotografias. Perguntei ao Simão, antes de reservar, se ele se importava de ir para lá. Ele hesitou, mas disse que sim.
Pois, chegámos lá, saímos e os cães vieram ter connosco felicíssimos.
O Simão fechou-se imediatamente no carro, em pânico. A medo, foi abrindo a porta e um dos cães enfia de imediato o focinho dentro do carro e lambe-lhe a mão. O meu filho ficou derretido — não de medo, diga-se.
Adorou os cães e passou o resto da viagem a dizer que queria lá voltar. Aliás, chegou a pedir para anularmos o resto da viagem e ficarmos por lá, naquele lugar escolhido por causa de línguas antigas (e por ser lindo), em vez de irmos a Paris.
Acabámos por ir a Paris, claro. E houve muito que contar — mas isso fica para o próximo capítulo desta história.
Deixem-me só dizer-vos que podemos ficar orgulhosos com os filhos por causa de muitas coisas — neste caso, fiquei orgulhoso pelo medo perdido, por decisão própria, do Simão.
O Matias tem os seus medos, mas não calhou perdê-los neste viagem. Também adorou os cães, claro está.
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Cada louco sua mania (já disse isto). Lá, perto dos cães, acabei por gravar outro vídeo sobre as línguas de França (que vício!). Aqui fica o que disse (mais uma vez, com revisões), não sem antes mostrar um mapa que ajuda a ver esta paisagem linguística.

As línguas de França
Estou numa zona linguisticamente muito importante: a zona de transição entre a langue d’oc, no sul de França, e a langue d'oïl, no norte de França.
A langue d’oc é o occitano, um conjunto de falares que já teve vários nomes ao longo dos tempos, como, por exemplo, provençal, uma das línguas importantes da Idade Média, da literatura medieval.
A langue d'oïl é o conjunto de falares que inclui a variedade que deu origem ao francês actual, língua oficial em toda a França.
Esta divisão entre langue d'oïl, no Norte, e langue d’oc, no Sul, é tradicional. Já se sabia que existia esta diferença na Idade Média e ela foi descrita até por Dante.
Não são as únicas línguas de França. Há também o franco-provençal, na zona encostada à Suíça. Há também o catalão. Há também o basco. Há o bretão. Há o corso. No Norte, há falares germânicos. Tudo isto é verdade, mas a distinção entre a langue d’oïl e a langue d’oc é uma das características mais importantes das línguas de França.
O occitano, a língua do Sul, foi muito importante, não só na Idade Média, por causa da literatura escrita em provençal, mas também mais recentemente. Um dos primeiros vencedores do Prémio Nobel da Literatura foi Frédéric Mistral, que escreveu, já no século XX, em provençal, ou seja, em occitano.
O occitano já é muito pouco falado, é verdade, mas continua a ser uma língua muito, muito importante e não é possível compreender a história linguística da Europa sem olhar para ela. Só para dar um exemplo: Ricardo, Coração de Leão, rei de Inglaterra, escreveu em langue d'oïl, que nós hoje chamaríamos francês, e escreveu também em langue d’oc — escreveu também em occitano!
Eram as suas duas línguas, para dizer a verdade: Ricardo, Coração de Leão nunca aprendeu, tanto quanto se sabe, a falar inglês (a nobreza inglesa não falava inglês e era de origem normanda).

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Ricardo, Coração de Leão, a falar occitano. A paisagem linguística da Europa, quando olhamos para ela sem os óculos da actualidade, sem os óculos da correspondência simples entre países e línguas, é muito mais interessante do que parece. Poderia acrescentar muitas outras provas disto mesmo sem sair das línguas de França: há uma aldeia no Sul de Itália onde se fala uma língua de França; as Viagens de Marco Polo foram escritas numa língua chamada franco-italiano; o único lugar do mundo onde o occitano é oficial é um município catalão (o Vale de Aran); é possível que os nossos dígrafos «lh» e «nh» tenham vindo do occitano; entre tantos outros pormenores...
Agora, é verdade que a França foi muito eficaz na defesa de uma língua única para todo o território, combatendo — até há poucas décadas — o uso das línguas diferentes do francês. Hoje, tudo está um pouco diferente. É mais fácil encontrar vestígios escritos do basco, do occitano, das outras línguas — mas o francês espalhou-se por todo o território, o que não é mau, em conjunto com a ideia perniciosa de que aprender e defender as outras línguas era um ataque ao francês, o que já é pior. Ora, as outras línguas não prejudicam o francês: podemos saber várias línguas.
Tinha de ser assim? A existência de um Estado implica sempre o quase desaparecimento de todas as línguas menos uma? Não, claro. Há vários casos em que a diversidade linguística convive bem dentro de um estado e há também casos de Estados que escolhem uma língua principal, mas tal não põe em causa a existência das outras línguas. Em contraste, a cultura linguística que saiu da Revolução Francesa fez equivaler as outras línguas — chamadas depreciativamente de patois — ao que era antigo, reaccionário, irracional. Muitos franceses (não todos, claro) passaram a ter uma certa fobia de todas as línguas não francesas — e este medo aliado a desprezo tem um nome: a glotofobia.
Estão hoje curados? Digamos que é um processo… E diga-se também que não é um mal que aflija só os franceses.
Ora, não há que ter medo. As línguas não mordem.
Com mais ou menos glotofobia, França é linda, muito interessante — e tenho muito para contar (sobre línguas, livros e filhos).
A viagem continuará em breve.