"Tea" vem de Transporte de Ervas Aromáticas?
Não. Conheça a verdadeira história das palavras "tea" e "chá".
Acrónimos a bordo das naus
A história conta-se em poucas palavras (é uma das razões por que se espalha): a palavra inglesa tea teria origem no acrónimo[1] da expressão portuguesa «Transporte de Ervas Aromáticas». Os navios portugueses vinham cheios de caixas com a indicação «TEA». Os ingleses viam as letras, liam-nas à inglesa… E daí surgiu a nova palavra para designar o que lá vinha dentro: o chá. Há quem imagine mesmo a rainha D. Catarina de Bragança, que ensinou os ingleses a beber chá, a chegar em navios carregados de caixas cheias de TEA. Tudo se conjuga para uma história apetitosa: uma rainha portuguesa ensina os ingleses a beber aquela que viria a ser a sua bebida nacional – e eles ainda copiam, papalvos, a palavra das caixas, sem perceber que eram apenas iniciais de uma expressão maior. Sorrimos, acreditamos, espalhamos.
É tudo uma grande invenção. A história, se fosse um navio, iria ao fundo rapidamente, de tantos buracos que tem. Há provas muito sólidas de que a história é falsa, mas comecemos pelo cheiro a mentira que tresanda. Por que carga de água os portugueses escreveriam um acrónimo de três letras em vez de usar a simples palavra «chá»? Queriam esconder o produto que traziam? Por que razão? Mas há mais: não era nada habitual usar acrónimos nessa época – são uma moda muito moderna. Imaginar um acrónimo deste tipo numa caixa do século XVI é quase tão estranho como imaginar a palavra «televisão» num documento da época.
Mas, mesmo que o leitor encontre boas respostas a estas perguntas, a verdade é que o navio desta história tem rombos ainda mais difíceis de reparar.
Comecemos pela própria expressão «Transporte de Ervas Aromáticas». Se, de facto, os navios usavam esta expressão nas caixas (ou sacos, ou o que fosse), haveria certamente algum registo (se não fosse o caso, como saberíamos de tão apetitoso episódio da história das palavras?). Podemos pesquisar no Corpus do Português, de Mark Davies, uma base de dados que recolhe uma grande parte dos registos históricos da nossa língua, e procurar a expressão. Aparece? Não. Nem uma vez (este corpus não recolhe os registos das últimas décadas). Pesquisando de várias maneiras e feitios, em papel e digitalmente, encontramos a expressão «Transporte de Ervas Aromáticas» apenas nas últimas décadas – e sempre na própria história que estamos a investigar! Tudo indica que foi inventada para se encaixar na palavra tea – e não o contrário.
Podemos ser um pouco mais malandros e tentar perceber se a expressão «ervas aromáticas» seria usada no século XVII… A acreditar nos registos escritos da língua, a resposta é não. A expressão «ervas aromáticas», em português, é mais recente do que a palavra tea em inglês. A primeira vez que as palavras «ervas aromáticas» apareceram em conjunto em textos escritos em Portugal foi no século XIX, em duas obras de Eça de Queiroz (Correspondência e Relíquia). Em suma: não há registo de tal designação ter sido usada nas caixas ou em qualquer outro documento relacionado com o transporte do chá (ou de qualquer outra coisa).
Algum leitor mais agarrado à história (calma, que ainda não mostrei a prova mais sólida) poderá argumentar: os registos escritos da língua são parciais; as referências poderão ter desaparecido. Mais: poderá até dar-se o caso de a expressão ter sido usada nas caixas, mas ninguém ter escrito nada sobre isso.
Ora, se fosse assim, como é que sabemos que a história é verdadeira? Ela aparece apenas nas últimas décadas (como veremos) – com base em quê? O mesmo argumento («se não está registado, quer dizer que pode ser verdade») serve também para TDC (Transporte de Chá), TEV (Transporte de Ervas para Vender), TIP (Tolices Inventadas à Pressão), entre todas as outras variações de acrónimos e palavras que queiramos inventar.
Até poderia dar-se o caso de a história ser, de facto, conhecida de historiadores. Investiguei bases de dados de artigos científicos para ver se algum encontrou registo deste «transporte de ervas aromáticas» por parte dos portugueses – e nada aparece. Procurei nas obras sobre a rainha D. Catarina de Bragança, que é referida em várias versões da história. Nada.
A rainha foi, de facto, importante na divulgação da moda do chá entre os ingleses.[2] No entanto, não foi a responsável por introduzir a bebida em Inglaterra – os ingleses já a conheciam, mas usavam-na como uma espécie de medicamento caseiro, um pouco como acontece hoje em Portugal, em que alguém que se sinta doente leva sempre com um chá, queira ou não queira.
A verdadeira origem de tea
Se nada do que escrevi até aqui servir para desconvencer os teimosos, devo acrescentar o rombo mais óbvio na teoria do «transporte de ervas aromáticas»: a origem da palavra tea é bem conhecida – e não é a expressão portuguesa. Mais: a sua forma mais antiga, em inglês, era tay. Lá se vai o acrónimo borda fora.
[…] a origem da palavra tea é bem conhecida – e não é a expressão portuguesa. Mais: a sua forma mais antiga, em inglês, era tay. Lá se vai o acrónimo borda fora.
A verdadeira origem de tea está em todas as obras de etimologia da língua inglesa – e não só, porque a mesma palavra aparece noutras línguas com formas ligeiramente diferentes. Curiosamente, a etimologia de tea também nos ajuda a conhecer a origem da nossa própria palavra: chá. São duas palavras que vêm da China, mas de variedades linguísticas diferentes.
Em mandarim e cantonês, a palavra para «chá» é parecida com a nossa – foi ao cantonês, aliás, que a fomos buscar. No entanto, há uma outra família linguística chinesa, chamada min, onde a palavra para chá é parecida com «tê». Ora, essa é precisamente a forma usada no porto de Xiamen, de onde saía o chá que chegava à Inglaterra, muito dele transportado pelos holandeses[3]. Este percurso está bem documentado – tal como o das duas designações da bebida pelo mundo: algumas línguas usam formas semelhantes a «chá», outras usam formas semelhantes a «tê». No caso do inglês, a palavra vem da forma usada na área do porto de Xiamen, mas passou primeiro pelo holandês, que usa thee. Há ainda a possibilidade – as histórias verdadeiras são sempre um pouco mais difusas do que as mentiras – de a palavra ter passado pelo malaio antes de chegar ao holandês.
As línguas que usam variações de «chá» receberam a palavra de duas formas: ou por terra, pelas antigas Rotas da Seda, partindo de zonas da China onde a palavra tinha uma forma semelhante, ou por mar, por causa dos portugueses, que trouxeram a planta, pela primeira vez, para a Europa no século XVI – sim, é verdade, nós trouxemos a bebida para a Europa e ainda a deixámos na Índia. Tanto assim é que as primeiras referências à bebida em inglês foram feitas usando a palavra «chá» – mais uma indicação de que a lenda do tea é falsa: os ingleses já conheciam a própria palavra portuguesa para a planta…
O Oxford English Dictionary regista que a primeira referência a uma das duas formas da palavra, em inglês, foi em 1598, como «chaa». A segunda referência foi em 1655, na tradução inglesa da História da China do português Álvaro Semedo, onde a palavra aparece como «chá», mas também como «tay» – sim, nos primeiros tempos, a palavra variava na sua grafia. Os ingleses nem sempre escreveram tea – também usaram tay e thea e a primeira versão foi mesmo tay. Ora, o acrónimo só funciona com uma das versões – e não é a mais antiga.
Estas várias formas – tay, thea, tea – têm origem numa palavra holandesa – thee. Os holandeses foram buscar a bebida a zonas da China onde esta é chamada «tê» – e espalharam a palavra por várias línguas, incluindo o inglês, que manteve formas semelhantes a «chá» na informalidade (hoje, «chai» é um tipo de chá), mas acabou por optar pela forma tea como nome genérico da bebida.
Repito: os ingleses conheciam a forma portuguesa da palavra – e usaram-na! Ou seja, mesmo que a planta fosse transportada em caixas com o acrónimo TEA (e não era…), os ingleses sabiam bem o nome do que lá vinha dentro. Depois, passaram a usar também a forma vinda do holandês, com várias grafias, que acabou por ser a palavra mais comum para designar a bebida. Não há nenhum acrónimo nesta história.
Uma lenda não muito antiga
Desmontada a lenda, fica a pergunta: quando é que surgiu? Andei à procura e a referência escrita mais antiga que encontro é de há pouco mais de dez anos, em Lisbon storie, um blogue italiano dedicado a Lisboa, num artigo escrito em Janeiro de 2012.[4] A partir daí, a história espalhou-se e, em 2017, chegou a um artigo da BBC[5]. Nesse mesmo ano, também é referida na revista Visão. Tanto a BBC como a Visão referem-se à história como lenda. Se olharmos para livros, encontro referências em guias turísticos de 2019 e no Brevíssimo Dicionário dos Snobs, de Rita Ferro, publicado em 2022, que menciona a lenda como uma história divertida, não parecendo dar-lhe muito crédito.
É possível que a história já circulasse muito antes, na oralidade ou em trocas de mensagens.[6] Quando falei deste tema num vídeo, encontrei uma pessoa que se lembrava de a ter ouvido em 1998. A memória humana é muito falível (a de todos!), mas, mesmo se aceitarmos esse ano, estamos a falar do final do século XX. Na escrita, foram estes os registos mais antigos que encontrei. Se o leitor quiser acrescentar algum registo mais antigo, ficarei muito contente.
A lenda pode ser engraçadita (há melhores), mas, neste caso, impede-nos de conhecer uma realidade mais profunda. Na história desta palavra dupla, encontramos vestígios das velhas guerras comerciais de europeus à bulha pelos mares do mundo. Bem mais interessante do que um acrónimo mal-amanhado.
Tea vem de Transporte de Ervas Aromáticas. – FALSO
Tea tem origem na palavra «tê», usada na zona do porto de Xiamen. – VERDADEIRO
O texto acima é um dos capítulos do livro Queria? Já Não Quer?
[1] Uma sigla é um conjunto de letras que lemos separadamente (como quando dizemos dê-vê-dê para DVD) ou que expandimos ao ler (como quando dizemos «Estados Unidos da América» ao encontramos EUA). Já um acrónimo é uma junção de letras iniciais que lemos como se fosse uma palavra. É raro, mas, às vezes, os acrónimos transformam-se em palavras. OVNI (Objecto Voador Não Identificado), por exemplo, já se transformou, nos dicionários, em «óvni».
[2] Sobre a importância da rainha D. Catarina de Bragança para o consumo de chá em Inglaterra, proponho a leitura do artigo de Susana Varela Flor com o título «“The Palace of the Soul Serene”: Queen Catherine of Braganza and the Consumption of Tea in Stuart England (1662-1693)».
[3] Na época, ninguém diria «neerlandeses» nem chamaria Países Baixos à Holanda, que não era ainda o país com as fronteiras actuais.
[4] https://lisbonstorie.blogspot.com/2012/01/te-inglese-no-portoghese.html.
[5] https://www.bbc.com/travel/article/20170823-the-true-story-behind-englands-tea-obsession.
[6] Há uma variação (como sempre acontece com estas histórias engraçadas): a palavra viria da letra T, de Transporte, que os ingleses leriam à inglesa, escrevendo depois tea.