Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Quem deu o nome à nossa língua?

Durante os primeiros séculos do reino, a língua não se chamava português. Quem lhe deu o nome?

Quando Portugal se tornou independente, os habitantes do novo reino continuaram a usar a língua que já usavam antes. Esta língua não tinha nome e não era particularmente diferente da língua falada na Galiza. Ninguém considerou necessário declarar qual era o idioma do reino. Dizemos hoje que o latim era oficial, mas esse conceito não existia, pelo menos com a definição que lhe damos hoje. O latim era a língua usada, na escrita, por quem escrevia − que eram poucos.

O reino expandiu-se para sul e, com ele, veio o idioma. No Sul, falava-se ainda latim hispânico já muito mudado e com muitas influências árabes − a língua a que chamamos hoje moçárabe. A língua do Norte era a língua da corte e dos soldados, da administração. A população acabou por moldar o seu latim a esse outro latim, incrustando-lhe umas pepitas moçárabes.

Aquele antigo latim do Norte − a que podemos chamar galécio, galego, portucalense, romance da Galécia ou da Galiza… − ganhou outro sabor, outros sons, algumas outras palavras, um tom ligeiramente diferente ao misturar-se com o latim do Sul, mas não deixou de ser a língua do Noroeste, agora transplantada para Sul, agora falada da Corunha ao Algarve.

Por alturas de D. Dinis, esta língua romance passou a ser usada nos documentos, mas ainda não tinha nome. No final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… A nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante − e tudo o mais que faz parte da História. Lisboa é agora a capital e poucos se lembram de que a língua veio do Norte. Mesmo com outras palavras e outro sotaque, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada em parte do território da antiga Galécia. Não houve, aliás, um ponto em que o galego e o português se separassem claramente.

Por alturas do reinado de D. Dinis, o romance falado em Portugal começou a ser usado nos documentos oficiais. Ninguém lhe deu nome, no entanto. Aquela era a linguagem, nome que se dava a essa forma de falar diferente do latim. Começaram a aparecer referências à «linguagem português» (a concordância era peculiar, mas era assim).

«Português», assim sem mais, como nome de língua, que se saiba, apareceu apenas já bem entrado o século xv. Foi D. Pedro, um ilustre tradutor, infante nas horas vagas, que assim escreveu na introdução à sua tradução do Livro dos Ofícios, de Cícero, dedicada ao seu irmão, D. Duarte, em 1430:

E por que nom sey per que aventuira se acertou que huü livro, que assaz d’annos ha me deu nosso irmãao, o Infante Dom Fernando, o qual Tullio compôs, e chama-se «dos Oficios», em este anno passado tomey afeiçom a leer per elle. E quanto mais liia tanto me parecia melhor e mais virtuoso, e non soomente a mym, mas assy parecia a alguüs outros a que eu liia em portugues alguüs seos capítulos, em tanto que per elles algüas vee[ses] fuy requerido que tornasse este livro em esta linguagem.

(Uso a transcrição presente no artigo «Cícero em Portugal: momentos de humanismo cívico», de Aires Augusto Nascimento. Uma versão levemente actualizada do mesmo extracto encontra-se em Assim Nasceu Uma Língua, livro em que Fernando Venâncio conta esta história.)

D. Pedro, o Infante das Sete Partidas, filho de D. João e de D. Filipa de Lencastre, aventureiro, tradutor, personagem quase mítica da nossa História… Parece ter sido ele quem pela primeira vez escreveu o nome da nossa língua, embora a língua já existisse havia muitos séculos.

Nunca poderemos ter a certeza, pois nada impede que amanhã se descubra um documento mais antigo com o nome do idioma (ou talvez até já esteja neste momento nas mãos de algum estudioso). Aliás, ninguém saberá se não houve documento mais antigo que se perdeu, em que alguém dava nome ao português. Dito isto, D. Pedro não deixa de ser um excelente padrinho para este idioma de um recanto perdido do antigo Império Romano, que depois se espalhou e se misturou pelas sete partidas no mundo.

(Crónica no Sapo 24, baseada num excerto do livro História do Português desde o Big Bang.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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9 comentários
  • Uma coisa que eu nunca escreveria: “a língua veio do Norte”.
    Suponho que tudo começou quando os portugueses começaram a chamar-se portugueses. Suponho que isto foi consequência de ter a dada altura surgido um reino que desde o seu início se chamou “de Portugal”. Também sabemos que este reino derivou de um condado chamado “Portucalense”. Porque havia nele uma cidade – se era sede de uma diocese e tinha muralhas era uma cidade – chamada “Portucale”. Tudo isto foram coisas que foram acontecendo. Sabemos que esta cidade tinha este nome – antes chamou-se por e simplesmente “Cale” – por um documento do século VI, o condado foi criado logo no século IX na sequência da presúria/reconquista das terras entre o Minho e o Douro e o reino surge no século XII.
    Mas não só os portugueses após a fundação do Reino de Portugal continuaram a falar galego como continuaram a ser ou a chamar-se galegos. Mesmo os mouros do sul. Mas o processo de deixar de ser galego e passar a ser português começou pelo menos com o Condado Portucalense.
    No fundo o que os portugueses fizeram foi restaurar a independência do Reino da Galiza/Suevo.

  • Não só a língua, Portugal inteira veio do Norte, visto que o condado portucalense foi crescendo à custa dos territorios árabes ao sul, tanto o reino quanto a língua foram se expandindo para o sul. O Sul que” veio” depois, não o contrário. Não é?

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