Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Quem tem medo do sotaque do Norte?

Há quem tenha horror aos sotaques diferentes. Há até uma palavra para designar esse medo irracional…

Gozar com o sotaque dos outros

Imagine um político português, nos corredores do Parlamento, rodeado de jornalistas. Imagine agora que um jornalista lhe faz uma pergunta com um carregado sotaque do Norte. Agora, imagine que o político começa a gozar com o jornalista, a dizer que não o entende — e termina, sobranceiro, a perguntar aos outros jornalistas se têm alguma pergunta «em português»…

Felizmente, esta cena é pouco provável no nosso rectângulo à beira-mar plantado. Mas, em França, aconteceu mesmo — Jean-Luc Mélenchon gozou cruelmente com o sotaque de uma jornalista do Sul. Por causa desse episódio, os franceses começaram a discutir a glotofobia, o medo da variação linguística. (Já agora, lenchon pediu uma espécie de desculpas pelo episódio.)

Todos nós, portugueses esclarecidos, abanamos a cabeça: nunca faríamos tal coisa. E, no entanto, mesmo que evitemos este tipo de gozo público, todos avaliamos os outros pela maneira como falam.

A pronúncia serve de GPS geográfico e social. As nossas antenas podem estar mais ou menos afinadas. Assim, quando ouvimos um sotaque de uma região que conhecemos pouco, a nossa antena dá-nos uma localização genérica («esta senhora é do Norte»). Se formos da região, talvez consigamos perceber a zona mais aproximada donde vem a pessoa («esta senhora é da zona do Porto»). Se formos da mesma cidade, é bem provável que consigamos perceber o bairro donde vem a pessoa — ou, pelo menos, a região social por onde costuma passear («esta senhora é da Foz»). Ora, este mapa mental está associado ao prestígio social de cada zona ou origem social — pode ser feio, mas é assim.

A coisa é ainda mais complicada: todos mudamos levemente de sotaque conforme a situação (e nem nos apercebemos). Em geral, tentamos aproximar-nos do sotaque de quem gostamos e marcamos as diferenças em caso de hostilidade. Além disso, o prestígio de cada sotaque depende do local onde estamos: o sotaque urbano do Litoral Centro (a que muitos chamam lisboeta) é usado na televisão e em muitos contextos formais — e é também o sotaque que tem invadido o resto do país, apagando algumas das diferenças no falar das gerações mais novas. No entanto, esse mesmo sotaque, em certos contextos, será malvisto. Imagine-se um café numa aldeia do Minho, onde se discute um qualquer assunto importante. Entra um homem e mete-se na conversa, usando um sotaque lisboeta. O sotaque de prestígio, ali, não será — provavelmente — o do forasteiro, principalmente se vier contrariar o que se estava a dizer…

O horror ao «cumo»

Felizmente, a recusa explícita em aceitar sotaques diferentes não é assim tão comum em Portugal. O sotaque do Norte — principalmente o sotaque do Porto — não será, certamente, o mais gozado. Mas já não é difícil encontrar risos e gozo por haver quem fale à beirã ou à transmontana — ou mesmo à alentejana. (Também não será impossível encontrar quem goze com o sotaque lisboeta — o que, enfim, serve para equilibrar um pouco as coisas.)

Disse que o sotaque do Porto não será o mais gozado — no entanto, ainda é possível encontrar (como encontrei há uns tempos) quem critique um intelectual do Porto por usar, na televisão, «cumo» — ou «dezoito» com o «o» fechado. Isto para não falar de quem se ri da leitura do «v» como um «b» ou de miríadas de outras marcas linguísticas de várias regiões do país.

De vez em quando, em certos comentários, percebemos que há ainda quem acredite que os sotaques diferentes do sotaque lisboeta são formas incorrectas de falar — segundo esta teoria, o português é bem falado em determinada cidade (a localização exacta de tal centro da perfeição linguística varia de caso para caso) e é maltratado nas outras regiões. E, no entanto, os sotaques não ganham prestígio por serem mais perfeitos ou genuínos, mas por serem usados nos centros de poder. Estivesse a capital no Norte do país e a troca do «v» pelo «b» seria obrigatória em situações formais.

Mais: o próprio sotaque da capital já mudou muito. Se ouvíssemos hoje um lisboeta do século XVI, é bem provável que pensássemos estar perante um transmontano de hoje em dia.

Os lisboetas não têm sotaque?

Os sotaques diferentes não estão errados — errada está, isso sim, a ideia de que há gente sem sotaque. Há apenas gente com sotaque mais parecido com a pronúncia considerada padrão no nosso país (uma pronúncia que não é linguisticamente melhor ou pior).

Agora, o que não podemos negar é que esse sotaque das cidades do Litoral Centro está a ganhar força. Ou seja: os portugueses andam a falar de maneira mais uniforme. Não que as pronúncias regionais estejam a desaparecer, mas estão a aproximar-se — um fenómeno que também acontece noutros países. Terá que ver com a televisão, com a rádio, com a maior mistura social, com o uso de determinada pronúncia na escola — e terá também muito que ver com a urbanização do país. As razões serão muitas, mas o fenómeno é inegável: as gerações mais novas têm sotaques mais próximos um dos outros.

O que — digo eu — só torna mais ridículo esse medo da maneira de falar dos outros. É natural haver a tal avaliação inconsciente, tal como é natural que nos aproximemos do sotaque de prestígio em situações formais — mas já não me parece correcto considerar que um determinado sotaque é o único aceitável ou que aqueles que falam como aprenderam em casa possam ser gozados por isso…

Afinal, se Camões aterrasse na Lisboa dos dias de hoje, a sua pronúncia seria de imediato catalogada como nortenha ou transmontana. No fundo, gozar com os outros sotaques é gozar com Camões!

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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13 comentários
  • Eu sou de Lisboa e não tenho sotaque (eh eh, eu sei que digo “coâlho” e “joâlho”); mas há mais de 25 anos que vivo no Algarve, em Lagos, e quem não conhece fala(s) algarvia(s) não sabe o que perde; muitas das pessoas que me rodeavam logo no início tinham uma acentuada pronúncia de Lagos (que não é Légos como muitos dizem, mas sim Láaagues); por divertimento comecei a tentar imitar o sotaque de “Láaagues” e ao fim de pouco tempo dei por mim a dizer “môuça marafáaada” e decidi deixar me armar em engraçado, até porque muitos nativos de lá não falam assim correntemente mas apenas por brincadeira, e assim como que numa cumplicidade de “sociedade secreta”. Mas o mais engraçado que vim a descobrir não é o sotaque mas terminologias e expressões, e que uma fala “engraçada” ocorre de forma muito semelhante em regiões nem sequer muito vizinhas, como Sagres/Vila do Bispo, Alvor ou Fuseta, em que são muito engraçadas as alterações às formas verbais; o “… diz que te emperrarem” da Fuseta, o “lá foramos e lá viéramos” de Alvor e o “teiam fome teiam figues, na comerem que não querão”; a relação entre elas parece ser o facto de serem todas zonas piscatórias. Uma característica da fala de Faro é a nasalazação do ‘a’ final (Hotel Evã) que aparece um pouco em Faro mas também em Lagos (“funcionaria Luisa à caixã três”); para além das expressões tipo o “Máquejête?” (mas de que jeito?) de Lagos, ou o “Béqueme” (bem como que) que aparece por exemplo na serra de Olhão, ou o “tem avondo” (já basta) que vai aparecendo em diversas zonas. Ainda há por lá alcagoitas (amendoins) ou griséus (ervilhas), ou pode-se lá estar estar almariado (enjoado de mar) ou ensampado (pasmado).

  • Não sei se vocês portugueses percebem ( já que são mais habituados ao sotaque brasileiro que o contrário) mas aqui no Brasil, país continental, há dezenas de sotaques. Os do Nordeste do país sofrem dessa gozação e ridicularização. Nosso sotaque ” oficial da TV ” são os de São Paulo e Rio ( este último Talvez seja o mais conhecido).

    • Com que então Lisboa situa-se no litoral centro de Portugal? Deixem-rir. Leiam o maior geógrafo nacional, Orlando Ribeiro, antes de dizerem asneiras com tiques etnocentristas.

      • A minha descrição do sotaque considerado padrão tentou abarcar Lisboa e Coimbra e, por isso, disse “Litoral Centro”. Não é o Litoral Sul (Alentejo e Algarve) e não é o Litoral Norte (de Aveiro para cima). Foi uma descrição banal, aproximada, retirada da minha observação de um qualquer mapa do país. Como é que isto pode ser lido como “asneira com tique etnocentrista” é coisa que me ultrapassa. Fico, confesso, com um sorriso nos lábios com este comentário tão “ao lado”. Enfim, imagino que tenha tido um mau dia. Obrigado pela visita e até breve!

      • Na verdade, a distinção entre as grandes regiões Norte, Centro e Sul, historicamente, sempre foi feita pelos rios Douro e Tejo. Assim, Lisboa, a norte do rio Tejo, está na região Centro.

  • Gosto MUITO de todos os sotaques que a nossa Lingua “Mátria” tem dentro e fora do nosso País.
    Obrigada por enaltecer o Norte e os nossos diversos sotaques, que embora não parecendo, ainda é vítima de mofa de muita gente.
    Abraço
    Maria Mamede

  • Não é só em Portugal que se faz gozação da pronúncia do Norte ou dos morcões a Sul do Douro… Parece-me que o Português com menos críticas é o de Coimbra e parece-me respeitar a antiguidade da Escola que lá foi criada.
    Enfim, é bom haver diversidade.
    Abraço,
    Pedro Fidalgo

    • A zona de Coimbra, com a sua velha universidade, que estabeleceu a norma, tem o seu sotaque próprio. No entanto esse sotaque é considerado a norma… (minha opinião)

  • Até por isso qualquer Acordo (com maiúscula, porque é esse mesmo) baseado principalmente na fonética e não na etimologia é uma parvoíce.

  • Nasci e cresci na região do Porto. Tenho orgulho na pronúncia do Norte, na medida em que ela faz parte integrante da identidade da minha região, mas não me custa admitir que certos sons adquirem aqui formas um pouco rudes. Imaginem como soaria a palavra “coração”no refrão da canção ” – Ena!Tantos “ãos” seguidos- “Quem me dera”, cantada por uma fadista da Ribeira. Se até na voz da Mariza a palavra não soa lá muito bem…

  • Caro amigo Marcos

    Primeiramente, quero dizer que sempre que se fala do acento ou pronunciaçom do norte, parece que a mais estandardizada é a da Invicta e, no norte de Portugal, existem várias variedades, umhas mais conservadoras do que outras, na minha opiniom é a castreja a que menos se afasta da língua nai. Em segundo lugar, infelizmente a variedade padronizada do diassistema linguístico galaico ou galego-português de Portugal, nom é a das cidades do litoral centro, é um dialeto baseado no português de registo formal de língua com oralizaçom de débito pausado da cidade de Lisboa e recebe o nome de português lisboeta ou português europeu. Como dis, felizmente em Portugal nom gozam como Jean-Luc Mélenchon, mas sempre há algumhas persoas que podem achar cómica a maneira de falar de outras e o pior é que já aconteceu um docente dos Açores ser impedido de ensinar em Lisboa, por exigência de um grupo de pais, sob o pretexto de que ninguém entendia o que dizia e, um prestigiado linguista português, criticou o sotaque de um colega do norte, porque nom pronunciava conforme à norma padronizada, para ele um professor nom podia falar com betacismo. Estes som dous exemplos do que acontece e nom só tem a ver com a televisom, com a rádio mais outras questons das que falas, tamém com o ensino, pois é a variedade padronizada a que se ensina, razom pola que as geraçons mais jovens pronunciam conforme à norma que aprendem e, assim, é como em moitas cidades de Portugal já trocárom o r ibérico ou à portuguesa polo r afrancesado do dialeto padrom, mas em Lisboa há outras pronunciaçons do r e umha vai substituir a que foi padronizada e outros traços da atual variedade lisboeta coloquial formarám parte da futura norma padronizada, como por exemplo, a queda das vogais átonas. Na minha opiniom os dialetos padronizados em um país e, sobretudo, espalhados através do ensino, som um perigo para o resto das variedades que se falam dentro do seu território. Saúdos e abraço

  • Como sempre, gostei muito deste artigo. De facto, todos temos sotaques diferentes; na nossa terra, o diferente é o outro, aquele que vem de fora; a geo-referenciacao linguística é uma realidade; a língua padrão é normalmente a da capital, a falada nos meios de comunicação social. Na escola, os professores provêm de várias regiões, não me parece tão determinante. Com o Marco Neves, tudo é dito de forma clara e sem incorreções – para leigos (e não só). Revejo-me nessas explicações. Obrigada.

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