Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Vermelho» ou «encarnado»? (Uma história de Natal)

O Natal é a época da família e da concórdia, mas também das grandes discussões à volta da mesa, quando as famílias têm a oportunidade de debater as grandes questões da Humanidade: o Brexit, a Impugnação de Trump — e se devemos dizer «vermelho» ou «encarnado»…

A nossa língua é um instrumento fabuloso, mas — como todas as línguas — é também campo de batalha. Imagino uma família à volta da mesa, nesta Noite de Natal. Juntam-se, na verdade, duas famílias: a do Pedro e a da Ana, casados há cinco anos. Pela primeira vez, os pais de ambos passam a Consoada juntos.

O Pedro nasceu em Lisboa e os pais vivem em Oeiras. A Ana nasceu em Bragança e os pais ainda lá vivem. À volta da mesa, conversa-se animadamente, com o calor especial daquela noite. A Ana vai aproveitar para contar que está grávida, mas ainda não chegámos a esse momento da noite. Enquanto o bacalhau não sai da cozinha, há uma enormíssima discussão.

Tudo começou quando, na televisão, alguém é entrevistado e usa a palavra «vermelho». A mãe do Pedro diz que não percebe donde vem aquela moda do «vermelho». Quando era nova, todos usavam «encarnado»! Que complicação…

Os pais da Ana franzem os olhos e explicam que nunca, em toda a vida, usaram a palavra «encarnado» de forma habitual. Já a ouviram na televisão, sabem bem o que significa, mas nunca foi uma palavra corrente.

O Pedro ri-se e conta a história de uma amiga que reclamou, junto da professora do filho, por esta ter usado a palavra «encarnado», que — segundo a tal amiga — foi uma invenção do Estado Novo. A mãe dele põe as mãos na cabeça, horrorizada com tal teoria.

A discussão avança, animada. É Natal, ninguém se enerva verdadeiramente. O pai do Pedro tenta explicar que as duas palavras não significam a mesma coisa, que as cores são ligeiramente diferentes. A discussão avança para a definição do exacto tom de vermelho e o exacto tom de encarnado. Ninguém se entende.

Se por ali aparecesse o Fantasma da Língua, inevitavelmente vestido de Camões, talvez explicasse, na sua sabedoria impossível de quem conhece os usos de todos os falantes do português, que as duas palavras são usadas como sinónimos em quase todas as situações. O pai do Pedro horroriza-se. O Fantasma toca-lhe, gentilmente, nos ombros, dizendo-lhe para não se enervar: em todas as línguas existem sinónimos e as palavras, muitas vezes, ganham significados novos, aproximando-se ou afastando-se de outras palavras.

Quanto à grande questão do vermelho ou encarnado, o Fantasma não diz qual é a melhor opção: depende da família. Afirma apenas que a palavra mais usada, em todo o país, é «vermelho» — e não é de agora: aparece várias vezes n’Os Lusíadas e muitas vezes n’Os Maias (limitei-me a procurar nestas duas obras). Já a palavra «encarnado» — que não foi, note-se, inventada por Salazar (aparece n’Os Maias, por exemplo) — é usada como alternativa, principalmente na zona de Lisboa e arredores, embora também se encontre noutras zonas do país. Acredito que, em certas famílias e meios, será mais comum. Note-se que há usos diferentes para uma e outra palavra.  No que toca à política, «vermelho» está associado ao PCP. No futebol, o Benfica é associado à palavra «encarnado». Há também nomes e expressões fixas em que todos usamos uma ou outra das alternativas. Em Peniche, de onde venho, há uma famosa Casa Encarnada, que não me lembraria de chamar «Casa Vermelha». Já o Capuchinho Vermelho terá sempre esse nome por esse país fora, em Oeiras ou em Bragança.

Se o Fantasma da Língua estivesse com tempo, talvez pudesse mostrar à família do Pedro e da Ana o seu telemóvel fantasmagórico, onde procuraria, numa interessante página chamada Google Trends, as diferenças de pesquisa entre «vermelho» e «encarnado» no país. As duas palavras existem e são usadas pelos portugueses. No entanto, há diferenças (muito) significativas. Não há nenhum distrito em que as pesquisas de «encarnado» sejam superiores a 10% das pesquisas relacionadas com a cor. Vamos dos 7% para «encarnado» e 93% para «vermelho» em Lisboa até aos 0% para «encarnado» e 100% para «vermelho» em Bragança. No Porto, há 1% de pesquisas por «encarnado» e 99% por «vermelho». Estes dados, que estão nesta página, estão longe de explicar tudo — mas são um indício da complexidade e da distribuição do uso destas palavras. Se ambas são correctas, a palavra «encarnado» parece ter um uso mais limitado territorial e socialmente.

Distritos de Portugal Continental com mais pesquisas por «encarnado» no Google nos últimos cinco anos. Note-se que, em todos, as pesquisas por «vermelho» são em muito maior número (desde 93% em Lisboa a 100% nos distritos a cinzento no mapa).

Se afinássemos a pesquisa e olhássemos para cada localidade, para cada bairro, para cada rua, para cada família, acredito que veríamos um mapa muito interessante, com ruas mais encarnadas, outras mais vermelhas, com famílias onde ninguém usa «encarnado» a outras onde o «vermelho» deixa um suor frio nas testas dos presentes. Este mapa muda ao longo do tempo e, no dia-a-dia, mistura-se: famílias que se juntam, gente que vai viver para outras ruas, para outros bairros, para outras zonas do país… Estas misturas internas serão, hoje em dia, bem mais comuns do que há umas décadas — e o choque das palavras diferentes cria alguns atritos, que a sabedoria ancestral das famílias lá vai resolvendo, em conversas na Consoada ou numa tolerância aprendida — sem falar dos preconceitos que vão persistindo, de quem vive entre gente que diz «vermelho», mas pensa para si, todos os dias, que «encarnado» é que é (e vice-versa).

Este exemplo da cor multiplica-se por outras palavras, por construções gramaticais, por entoações e pronúncias. A língua não é um conjunto simples de palavras fixas e regras claras — é muito mais complexa do que isso. É uma nuvem variável e complexíssima, que ninguém domina na totalidade. Quem trabalha a descrevê-la tem de estudar afincadamente, analisar dados, combater impressões vagas — e anda sempre com dúvidas: a língua é mesmo muito difícil de apanhar.

Não temos todos de estudar a língua. Mas podemos combater a doce ideia de que o correcto é apenas aquilo de que nos lembramos de ouvir desde sempre no nosso restrito meio; podemos desconfiar das explicações simples («a palavra “encarnado” foi inventada por Salazar!»); podemos aceitar que há palavras que se referem à mesma coisa e que nem todos têm de ter as mesmas preferências (aliás, com significado semelhante, temos mais palavras: «rubro», «escarlate»…).

Sim, é possível viver melhor ou pior com a língua — e uma forma de viver melhor é aprender a viver, para lá das nossas palavras, com as palavras dos outros. As diferenças sociais e regionais, na língua, sempre existiram e continuarão a existir. Ainda bem: não só esta tensão social em redor das palavras é excelente material para os escritores, como as discussões à volta da língua apimentam os dias e deixam-nos de coração aos saltos, com as palavras à flor da pele. No fim, se tudo correr bem (e nem sempre corre), brindamos a rir, à volta duma mesa decorada nos tons da Consoada — e, com os olhos a brilhar das luzes da árvore, a Ana revela por fim que há-de nascer, num dia de Verão, um bebé feliz, numa família à portuguesa, que um dia visitará os avós, em Oeiras e em Bragança — onde os abraços serão igualmente apertados e felizes.

Adenda: na dissertação de mestrado «Termos de cores (verde & vermelho)», Abdelkarim Diane apresenta dados que mostram a presença na nossa língua tanto de «vermelho» como de «encarnado» desde o século XIII, com predomínio da primeira forma. Curiosamente, até ao século XVIII, «roxo» era um sinónimo muito comum de vermelho, o que se enquadra no que acontece noutras línguas latinas (basta pensar no «rojo» castelhano e no «rouge» francês).

Este artigo foi publicado, numa versão ligeiramente diferente, no Almanaque da Língua Portuguesa.
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

Comentar

28 comentários
  • No Brasil, que eu saiba, nunca se usa encarnado, só vermelho. E também dizemos Chapeuzinho Vermelho, não Capuchinho Vermelho.

      • Na Galiza dicimos encarnado mais do que vermello, cando menos, os falantes que temos o galego como primeira lingua. Vermello vese mais coma un neoloxismo ou cultismo.

    • Sou brasileiro, do estado de Alagoas e cresci ouvindo muito mais encarnado do que vermelho.

  • Se quixer enlear unha familia galega, a pergunta tería que ser se roxo vermello e encarnado son sinónimos, ou ben roxo é unha cor diferente, e en tal caso, que cor é exactamente….
    Exito asegurado.

  • Marco, minha bisavó, nascida em 1920 no interior de um estado pobre no norte do Brasil, usava a expressão ” encarnado” para vermelho escuro.

  • Em Corcubiom, na Galiza, “encarnado” é o termo mais popular. “Vermelho” é de uso mais culto ou literário.

  • Quando criança, no sertão do nordeste brasileiro onde nasci, ouvia mais encarnado. Só passei a falar vermelho quando me mudei para Brasília, centro do meu país. Quando conheci Lisboa me emocionava quando ouvia alguém falar encarnado, pois lembrava minha infância.

  • Aqui no Brasil vermelho ganha disparado do encarnado. E o Flamengo veste uma camisola(?) RUBRO-negra. Capuchinho é um tipo de frade franciscano. A menina que se envolveu com o Lobo é Chapeuzinho. Mas o difícil foi entender a Consoada. Inexiste a palavra no Brasil, salvou-me o Google.

  • Gosto muito de acompanhar os seus comentários e recomendações e com certeza deve de estar correto, mas neste caso específico da época natalícia é cor Coca Cola… 😁 Feliz natal.

  • Desmentindo meu próprio comentário, o hino popular do Fluminense Foot-Ball Club do Rio de Janeiro é SANGUE ENCARNADO, baseada na música Bella Ciao dos partisans italianos. Aqui a letra:

    Eu visto o sangue
    Do encarnado
    Sou tricolor!
    Tricolor!
    Tricolor!
    Minha bandeira é centenária!
    O Dá-lhe Dá-lhe Tricolor!

    Eu visto o sangue
    Do encarnado
    Sou tricolor!
    Tricolor!
    Tricolor!
    Minha bandeira é centenária!
    O Dá-lhe Dá-lhe Tricolor!

  • Continuando a me desmentir, abaixo um texto delicioso de Carlos Heitor Cony publicado na Folha de São Paulo em Set/1999 que trata do vermelho e do encarnado, no caso do General Henrique Lott: vejam o texto:

    Por falar nisso, nessa pobreza de informação visual de nossa mídia, ainda no início dos anos 60, lembro o general Lott, candidato à sucessão de Juscelino Kubitschek.
    Era ministro da Guerra, tinha a foto diariamente publicada nos jornais, aparecia frequentemente na TV, mas tudo era em preto-e-branco. Ninguém sabia como ele era realmente.
    Os que o conheciam pessoalmente sabiam que era um homem de rosto extremamente vermelho, traindo a sólida origem teutônica. Era mais do que vermelho – e lá vai o lugar-comum: era vermelho como camarão.
    Durante a campanha eleitoral, foi dar com os costados numa cidadezinha do Nordeste, onde predominavam os habitantes pálidos e amarelados pela falta de vitaminas e sais minerais.
    Quando passou pela rua principal, a pé, distribuindo saudações genéricas aos futuros eleitores, um deles exclamou com estupor: “Virge! O homem é encarnado!”.
    Até há bem pouco tempo era comum chamar o vermelho de encarnado. E, em certas regiões, o encarnado era a cor do demônio. O resultado é que naquela vila o general perdeu feio para seu oponente, que era Jânio Quadros, cujo tipo físico combinava com o desnutrido padrão antropológico da região.

  • Pois teremos que engadir que prá cima do Minho, e cando eu de cativo, a palavra familiar e comarcal, ponhamos para o fundo da ría de Vigo, é encarnado..

    • No Rio de Janeiro só ouvi falar em vermelho. “Encarnar”era “chatiar”, fazer “bullying”.

  • Na minha infância, na casa dos meus pais, dizia-se “encarnado”.
    Aos 6 anos, quando entrei para,a escola, a minha professora corrigiu-me, dizendo que o nome da cor era vermelho. Nunca mais usei senão o termo vermelho e de facto era o que ouvia a toda a gente.
    Algum tempo depois do 25 de Abril comecei a reparar que determinada classe social (a mesma que passou a cumprimentar com um e um só beijo) dizia sempre “encarnado”. 😉

  • Na minha infância, na casa dos meus pais, dizia-se “encarnado”.
    Aos 6 anos, quando entrei para a escola, a minha professora corrigiu-me, dizendo que o nome da cor era vermelho. Nunca mais usei senão o termo vermelho e de facto era o que ouvia a toda a gente.
    Algum tempo depois do 25 de Abril comecei a reparar que determinada classe social (a mesma que passou a cumprimentar com um e um só beijo) dizia sempre “encarnado”. 😉

  • Obviamente que “encarnado” não foi inventado por Salazar, mas a cor do Benfica ser designada como “encarnado” na comunicação social, e não “vermelho”, como sempre esteve nos estatutos, foi uma imposição do Estado Novo.

    • Infelizmente, não é assim tão óbvio: já encontrei quem acreditasse piamente que o nome da cor tinha sido inventado por Salazar. De um grão de verdade cria-se uma mentira.

  • Vendo pelo preço por que comprei: Durante o fascismo, ‘vermelho’ estava associado ao PCP; e houve, de facto, instruções (Salazar não funcionava sozinho…) para as pessoas se referirem ao Benfica como ‘os encarnados’. Não sei se é verdade, se não; mas, para quem viveu o fascismo, faz sentido…

    • Parece-me plausível. Poderá até ser uma opção pouco consciente por parte de certos falantes associados ao regime. Mas o disparate está em achar que a palavra «encarnado» foi inventada por Salazar. Enfim, quem conta um conto… Um abraço!

  • “As cores mais marcantes – juntamente com o preto, que se
    considera como uma ausência de cor, e com o branco, como uma combinação de cores …”

    Esta frase constava no ensaio que V.Ex.a sugeriu.
    Quer comentar?

    Cump..
    Brand..

    • As cores são diferentes frequências do espectro electromagnético. O branco é a mistura de muitas frequências de luz (dentro do espectro visível), produzido por materiais que reflectem toda ou quase toda a luz que recebem. Já o preto é a ausência de emissão de luz. Um material de cor preta é um material que absorve e não reflecte a luz que recebe. (No caso dos ecrãs de computador ou televisão, para criar branco ligam-se as três cores usadas e para criar preto desligam-se.)

  • Marco, já conhecia (da primeira publicação) esta deliciosa história de Natal sobre o “vermelho” e o “encarnado”. Nessa altura , vivendo em Angola, lembrei-me do nome que se dá à cidade de Benguela -” a cidade das Acácias Rubras” e nunca das acácias vermelhas ou encarnadas…

    Entretanto, agora, estou a residir em Portugal e de vez em quando lá me sai a expressão : vamos “matabichar” ou o “mata-bicho” foi café e pão com manteiga….Isto confunde muitos portugueses, mas eu apenas quero dizer ” vamos tomar o pequeno almoço ” ou o “pequeno-almoço” foi …

    A propósito , Feliz Natal….

  • Só hoje li o artigo. Mais vale tarde que nunca… Gostaria de acrescentar que, à época, os seguidores do ditador Salazar que eu tive o desprazer de encontrar como professores na primária e no liceu impediam o uso da palavra ” vermelho” pela sua eventual associação ao comunismo. E olhavám-nos com uma raiva mal contida!

Certas Palavras

Arquivo

Blogs do Ano - Nomeado Política, Educação e Economia