Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A que horas é o jantar na Galiza?

Para estes dias mais caseiros, começo hoje uma série de viagens pelas línguas do mundo, desta vez usando a voz. A primeira viagem tem de ser à Galiza… Os nomes das refeições, a norte do Minho, são muito familiares — e bem capazes de baralhar um português.

Se formos até à Galiza e alguém nos convidar para jantar (usando a palavra com a pronúncia galega, que será algo como «xantar»), convém confirmar muito bem as horas. É provável que o galego ou a galega esteja a pensar no nosso almoço.

As três palavras para as três refeições mais importantes do dia, em galego, são:

  • ALMORZO / ALMOÇO
  • XANTAR / JANTAR
  • CEA / CEIA

Ora, o «almorzo»/«almoço» é a primeira refeição, que por cá chamamos «pequeno-almoço». Já o «xantar»/«jantar» é por volta das 2 da tarde… A «cea»/«ceia» é a refeição que tomamos ao final do dia (e não estou a falar da «ceia» à portuguesa, uma refeição leve antes de dormir. Estou mesmo a falar do jantar — no fundo, a ceia galega é como a Última Ceia de Jesus e dos Apóstolos: na verdade, é um jantar.

Olhemos agora para a maneira como os galegos escrevem a palavra «jantar» (ou seja, almoço — isto, para um português, é de dar a volta à cabeça)… Como saberão aqueles que acompanham o que escrevo no blogue Certas Palavras, a ortografia, na Galiza, é sempre interessante.

A ortografia oficial do galego propõe a forma «xantar». Este <x> representa a consoante que por cá representamos, na maioria das vezes, com um <ch>. Muitas palavras que, em português, são escritas com <j> ou com <g> (antes de <e> ou <i>) aparecem grafadas com <x> nos textos galegos. Isto acontece porque, a norte do Minho, não há distinção entre as consoantes das nossas palavras «chá» e «já».

Em português, são sons muito parecidos: a língua está na mesma posição e o som passa como uma corrente de ar turbulenta. É uma consoante fricativa palatal — a diferença é esta: no caso da consoante de «já», as cordas vocais vibram; no caso de «chá», não vibram. O <j> português representa uma consoante sonora; o <ch> representa uma consoante surda. Estamos perante dois fonemas diferentes, que permitem distinguir significados — e esta diferença está apenas na vibração ou não vibração das cordas vocais.

Os reintegracionistas, que defendem para o galego uma ortografia mais próxima da portuguesa, escrevem «jantar» (tal como também escrevem «almoço» e «ceia»). Note-se que, apesar desta diferença, jantam à mesma hora que os outros galegos (por volta das duas) e, na oralidade, também não distinguem os dois sons. Será estranho? Ora, é uma distinção gráfica sem reflexo na oralidade, tal como acontece, em português, com o <ss> e o <ç>, que representam o mesmo som. A ortografia mantém uma distinção que grande parte dos falantes já não faz na oralidade… Na Galiza, os reintegracionistas mantêm uma distinção gráfica que liga a ortografia à História da língua e ao uso actual daqueles que consideram ser falantes de outra variante da mesma língua.

Voltando ao jantar que afinal é almoço: não é assim tão difícil encontrar portugueses que se lembram de ouvir chamar «jantar» ao almoço. Se não é esse o significado no português-padrão, é um significado que sobreviveu muito tempo nos usos populares da língua. O português e o galego estão muito próximos — se atentarmos aos usos populares, não podemos deixar de reconhecer que estão intimamente ligados.

Curiosamente, quando um galego fala com um português e sabe desta diferença entre o uso dos mesmos nomes a norte e a sul do Minho, pode dar-se o caso (já me aconteceu) de usar as palavras à portuguesa, baralhando um português (como eu) preparado para usar os nomes à galega. Há vezes em que tentamos aproximar-nos tanto dos outros que tropeçamos. É mais uma volta no parafuso linguístico…

NOTA

Sobre a ligação entre o galego e o português, já escrevi vários artigos no blogue Certas Palavras. Por exemplo, o artigo «Viagem a Nova Orleães a bordo do português». Desenvolvi o tema no livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?, da editora Através.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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14 comentários
  • Cresci a ouvir denominar assim as refeições, bem no centro de Portugal (concelho de Condeixa-a-Nova, distrito de Coimbra). Acho que a minha aldeia é um excelente caso de estudo no que toca ao português que por lá se fala! 🙂

    • Na verdade, também eu aprendi na minha infância precisamente como é normal na Galiza. Aliás, vivia um galego na minha aldeia, mas não seria por isso, pois, em geral, todos os que eram do tempo dos meus avós falavam assim. Só após tomar contacto com os livros e com a uma língua que já não era a dos muitos analfabetos daquele tempo, aprendi a nomear as refeições mais à moderna. Acrescento que nasci em 1939.

    • Sou do Porto e, também eu, na minha infância, sempre ouvi que as refeições principais são: o almoço, o jantar e a ceia. Conheço razoavelmente bem o país e, pelo que me é dado ouvir, as pessoas de mais idade ainda nomeiam assim as refeições, seja no Minho, no Douro, em Trás-os-Montes, na Beira Alta e até mesmo noutros sítios.
      A primeira vez que ouvi falar em “pequeno-almoço” foi na escola, numa aula de francês – le petit déjeuner – que nós, depois, aportuguesámos para “pequeno-almoço”. Refiro ainda que “almoço” (“pequeno-almoço”) quer etimologicamente dizer “a primeira mordida do dia” e, parece-me, que a palavra galega está mais próxima deste significado.
      Já agora: “o almoço” (“pequeno-almoço”) consistia numa sopa grossa de legumes, com alguma batata, cereal e um “cheirinho” de toucinho quando o havia. A esta sopa grossa chamávamos de “caldo” (de “cálido”), por ser servida bem quente.
      O tempora! o mores! (Ó tempos! ó costumes!)

      • Gosto imenso do seu comentário! Ese tamén era o meu almorzo, na Galiza, un caldiño ben quente. Outras veces sopas de pan con auga fervida e un rustrido de touciño. O leite con colacao chegou moito máis tarde. Nacín no 1963. Obrigada.

  • As denominações das refeições variam segundo regiões e países diferentes também noutras línguas, como, por exemplo, em inglês, francês e espanhol, e não só.

  • Meus pais naceron a 10 Kmts de distancia (Ribadeo-Sao Miguel de Reinante – LUGO) Ribadeo sempre foi mais vilego que Sao Miguel, mais rural e agrícola, e os horarios nao eran os mesmos co que o o pequeno almoço de Ribadeo (bem despos do amncer) casi coincidia co jantar no campo, sobre o meiodia. Em Sao Miguel o pequeno almoço era ao redor das 7 (ou antes) e a esas horas os vilegos estaban a dormir ainda…. Con ese conto do que era o Almoço ou desauno e o jantar tenhen casi rifado. 🙂

  • Que coisa linda aprender sobre galego e sua semelhanças com o português! Sou brasileiro e amo a língua portuguesa e também o castelhano. E pelo visto acho que vou amar também o galego.

    Obrigado por nos brindar com este podcast! Continue!

  • Sou brasileiro e amo a nossa língua portuguesa. À parte algumas distinções (o pequeno-almoço dos portugueses é o nosso café da manhã), em algumas regiões rurais e remotas do Brasil também se janta cedo, como os galegos. E se ceia à noite. Mas isso já foi muito mais frequente no passado. O que eu acho maravilhoso na interação das línguas é que no Nordeste brasileiro é comum se ouvirem expressões galegas como “xente” ou “Vixe!” (Virgem!). O galego é nossa língua irmã e deve ser ao máximo valorizado.

    Outra agradável surpresa que tive foi compreender perfeitamente o ladino, a língua dos judeus ibéricos, que tem raizes no espanhol mas tem pitadas de português. Um abraço a todos.

    • Fiquei impressionado com os comentários pola vitalidade que ainda tem, em boa parte de Portugal, a denominaçom das refeiçons como som na Galiza. No fundo, nom deixa de ser o esquema que tinha o português antigamente. Como curiosidade, quando dei aulas de espanhol, em 2014, na Junta de Freguesia da Estrela, lembro-me de comentar esta curiosidade do galego e umha aluna do norte, moradora havia anos deste bairro lisboeta, dizer que ela ainda falava assim na casa dela com a família. Parabéns polo artigo!

      • Sim, tanto aqui como no Facebook, quase todos os comentários confirmaram: ainda todos se lembram de usar estes termos. Fiquei surpreendido! Um abraço e obrigado!

  • Na zona de Pombal(Leiria), no tempo dos meus avós e na juventude dos pais era exactamente assim. Por isso não é nada de estranhar.

    O almoço era à hora do nosso pequeno almoço porque o pequeno almoço deles já teria sido às 5h da manhã antes de ir para a lavoura.

    O jantar seria à hora do almoço e ceia à noite, com a merenda a meio da tarde.

  • Eu sou galego do norte e na minha zona sempre se empregou almorço para as refeições do meio-dia. Isso de jantar, sinceramente, só o escoitei na escola ou na televisom. Sei que há zonas da Galiza nas que esta verba tem bastante uso (inda que nom o puidem comprovar em pessoa polo momento), mais na minha directamente nengum.

  • Lembro-me do meu avô me contar que antigamente nas aldeias da serra da Lousã, perto de Coimbra, as refeições eram assim:

    O almoço – correspondente a um pequeno almoço era muito ligeiro e tomado logo ao levantar lá pelas 5-6 da manhã.

    O petique tomado muitas vezes em casa do patrão ou nos campos, por norma um pouco mais substancial que o o anterior isto por volta das 7-8 horas.

    O jantar por volta da hora do nosso almoço, meio dia +/-

    A merenda era o nosso lanche e era tomado durante a tarde 15-16horas

    A ceia correspondia ao nosso jantar mas por volta das 17/18h horas

    E finalmente o ceote tomado antes de ir para a cama e por norma era uma refeição muito ligeira quanto às horas… por volta das 7-8 da noite eheh.

    Já agora uma outra curiosidade estes horários não eram fixos, tinham também a ver com a altura do ano, com as horas a que o sol nascia e se punha.

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