Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

As línguas mudam porquê?

Já sabemos que as línguas estão sempre a mudar. Mas porquê?

Pensemos nessas tribos nómadas, de há muitos milhares de anos, que percorriam as savanas, as florestas e as montanhas dum mundo sem aldeias nem cidades. Cada uma dessas tribos teria a sua língua, com as suas regras e palavras, uma língua preparada para contar histórias, avisar dos perigos em redor, dizer mal do vizinho, ensinar a usar as ferramentas tradicionais, explicar a criação do mundo, namorar em sussurros, mentir descaradamente, discursar na coroação do chefe, ordenar a execução do guerreiro capturado, contar boas anedotas à volta do delicioso javali. Ou então fazer conversa de chacha, a meio da tarde, enquanto se está sentado com um amigo à espera do regresso dos pais. Ah, e certamente haveria conversas sérias, de adultos, a criticar a maneira como os filhos falavam, a gozar com a maneira de falar daquela mulher vinda de outra tribo e a apontar um erro numa frase infeliz que o chefe usara num discurso.

Uma tribo, que é um grupo muito mais pequeno que as actuais sociedades ocidentais, teria uma língua talvez mais uniforme do que as línguas que conhecemos. Certamente que a língua seria usada de maneira diferente numa cerimónia ou entre amigos — mas as várias famílias da tribo não teriam sotaques muito diferentes nem vocabulário muito diverso. Por outro lado, como as tribos viviam num grupo coeso e claramente separado de todos os outros, as línguas tenderiam a separar-se umas das outras de forma bem marcada.

Temos aqui um ideal que ainda hoje muitos levam na cabeça: a língua deve ser uniforme dentro de cada sociedade e bem distinta das línguas que a rodeiam. A nossa paisagem linguística é muito distinta da paisagem idealizada dum mundo tribal, mas esse tribalismo linguístico ainda sobrevive, bem forte, no coração de muitos falantes.

Apesar da tal uniformidade, a verdade é que dificilmente duas pessoas falariam exactamente da mesma maneira que a pessoa do lado. E já nesses tempos cada geração tenderia a mudar subtilmente a língua que recebia.

Porquê?

Há várias explicações, mas a mais importante é esta: uma língua não é aprendida conscientemente. O cérebro duma criança refaz o sistema linguístico que está no cérebro dos pais sem que ninguém lhe ensine as regras. Este método é extraordinariamente eficaz — o cérebro está afinadíssimo para essa aprendizagem durante os primeiros anos de vida. Só assim se explica que uma língua mantenha muitas das suas características fundamentais ao longo de séculos e séculos. Mas não é um sistema perfeito — e ainda bem! Os seres humanos não são robots de fácil programação. Não há um cérebro igual. Não há um corpo igual. Somos todos subtilmente diferentes. Mais: as circunstâncias em que ouvimos a língua dos nossos pais é diferente de pessoa para pessoa. As conversas, as palavras que ouvimos — não há ninguém que faça o mesmo exacto percurso. Cada falante tem a sua história e aprende uma língua muito pessoal — os linguistas têm, aliás, um nome para essa língua pessoal: o idiolecto.

Por outro lado, se cada pessoa fala de maneira particular, a verdade é que cada língua tem regras — e os falantes notam quando outra pessoa não cumpre uma regra. Não falo das regras de ortografia ou de certos tabus — falo, por exemplo, disto: se um português disser «Vou com praça!», quem o ouvir estranhará. O sistema que aprendemos leva-nos a aceitar umas frases e a recusar outras. Mais uma vez, este sistema é subtilmente diferente em cada cérebro — há frases que podem acordar a sensação de erro num falante, mas não noutro. Nada disto é simples…

As línguas, que existiam muito antes de alguém saber escrever ou de aparecerem as primeiras gramáticas, são criadas pelo uso, sem plano, sem decisões conscientes. São um conjunto de hábitos enraizados — hábitos esses que são transmitidos às crianças através de um sistema que aproveita as características do cérebro humanos. Cada língua é usada por pessoas diferentes e desse uso nascem regularidades, pormenores gramaticais, palavras diferentes — e que estão sempre a mudar, devagar, mas inexoravelmente, pelos séculos fora. Se uma língua se aguenta muitos séculos, nunca se aguenta igual ao que era.

Este artigo é um excerto do livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?, publicado pela editora Através em 2019.
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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