Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A boa loucura linguística da Suíça

Fui à Suíça uma vez só, de passagem, num autocarro cheio de algarvios. Agora não tenho tempo para explicar como me meti em tais sarilhos. Digo apenas que foi há 20 anos e ainda hoje me lembro dessa viagem com saudade.

Chegámos a Genebra depois de jantar. Passeámos pela cidade durante toda a noite. Fomos a uma discoteca. Saímos muito tarde. O sol nasceu. Havia um repuxo gigante. Aprendi palavras algarvias. Depois, adormeci no autocarro durante o resto da manhã e abri os olhos vagamente, depois de bater com a cabeça no banco numa curva mais apertada — foi então que vi uma gloriosa paisagem alpina onde havia vacas a pastar. Ou então estou a misturar tudo com um anúncio da Milka.

Pois bem, passei a correr por essa Suíça rodeada de França. Por baixo dos meus pés (não sabia na altura) estava o CERN e o seu acelerador de partículas — e, à minha volta, estava a língua francesa na boca dos suíços.

Ora, a Suíça é um país linguisticamente curioso: tem várias línguas — e não tem grandes problemas com isso, pelo que me é dado a saber.

O país — que é uma confederação de cantões com uma autonomia que fica a dever pouco à independência — tem quatro línguas nacionais: o alemão, o francês, o italiano e o romanche.

As quatro línguas convivem no mesmo Estado. O Governo central usa as quatro (embora o romanche não seja tão comum a esse nível). Não há obrigação de todos os cidadãos conhecerem uma das línguas, apesar de o alemão ser claramente maioritário. Cada cantão tem a sua política linguística e um deles chega a ser trilingue.

Tantas línguas prejudicam a Suíça? Não me parece. O país funciona mal? Não consta. Funcionaria melhor se usasse uma só língua? Ninguém sabe, mas sabemos isto: a Suíça, se tem algum problema, é funcionar bem demais. Atrevo-me a fazer esta previsão: quisesse a Suíça começar a dar uma dignidade oficial muito superior a uma destas línguas e a paz começava logo a estalar.

A outra língua da Suíça

Por outro lado, no que toca ao alemão, há uma forma particular suíça — o suíço-alemão. Este nome abrange vários falares germânicos que podiam, facilmente, ser usados para criar uma nova língua suíça. O Luxemburgo fez isso mesmo há poucos anos.

Os suíços de língua alemã vivem numa situação que os linguistas chamam diglóssica: no fundo, sabem duas línguas, pois os dois sistemas são suficientemente autónomos para serem aprendidos como línguas separadas — e usam as duas línguas em situações sociais diferentes, como se fossem registos. Ou seja, tal como nós usamos um português formal numa aula e um português informal no café, os suíços de língua alemã usam uma língua durante a aula e outra no café.

Isto pode levar a que um professor universitário responda em alemão durante a aula e em suíço-alemão no corredor da faculdade — e nem precisa de mudar de aluno.

Imagino eu, que não sei alemão, que esta situação implica toda uma série de gradações, usos misturados e algumas confusões. Também me parece pouco crível que tudo se faça sem tensões e alguns preconceitos — mas, enfim, estamos a falar dos suíços. Se calhar, são mesmo os únicos que conseguem navegar estas águas sem desatar às traulitadas.

Mais a sério: naquele país, há uma história de compromissos que desembocou na actual situação complexa, mas pacífica. As situações complicadas resolvem-se assim.

O português que não gosta da maneira como os suíços falam

A nós, país onde se fala uma língua que é oficial em todo o território, tudo isto pode fazer confusão. Ainda há uns dias encontrei um texto rabugento no Facebook, em que um emigrante português na Suíça ralhava com os outros portugueses emigrados na Suíça. O pecado deles? Andavam a aprender palavras em suíço-alemão. O texto era bem irado: usava palavrões e tudo. Dizia ele que português que é português, na Suíça, devia aprender alemão e nunca um dialecto de m*rda.

Pareceu-me que aquele homem também estava um pouco irritado com os próprios suíços. Por que carga de água não hão-de falar sempre em alemão a sério? Que mania!

Bem, já sei: no Facebook, há indignações para todos os gostos. Mas esta atitude mostra bem uma certa maneira de olhar para as línguas que faz estrago em muitos países. Essa atitude compõe-se de uma crença absoluta no valor intrínseco e óbvio da língua-padrão e um desprezo em relação a todos os falares que não sejam a língua oficial. Não é preciso pensar muito para vermos o que acontece quando muitas pessoas acreditam que o valor da sua língua é bem superior à língua de outros cidadãos do seu próprio país — quer por causa do número de falantes quer por causa das fantasmagóricas qualidades dessa língua.

O problema da linguagem humana não é a sua imensa variedade — é, isso sim, a nossa falta de paciência para aceitar as línguas dos outros.

E que tal uma Espanha mais parecida com a Suíça?

Os suíços dão valor oficial a uma língua (o romanche) falada por pouco mais do que a população duma freguesia lisboeta. As crianças dessa zona, na escola, aprendem a escrever nessa língua falada por muito poucos. Depois, aprendem mais línguas do seu país e ninguém se importa com isso…

Mas nem é preciso chegarmos ao romanche: temos o francês, o italiano e o alemão. É verdade que são língua protegidas pelos países vizinhos. Mas, no total, são quatro línguas e a Suíça teve de aprender a viver com esta variedade toda. A solução foi dar uma dignidade oficial a todas elas.

Tem custos? Sim, claro. No Parlamento federal, por exemplo, é preciso haver intérpretes — é um pequeno preço a pagar pela paz linguística e pelo respeito igual devido a todos os idiomas do país. Sim, acredito que esta atitude é um bom exemplo para outros países com várias línguas. E, sim, estou a pensar em Espanha.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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10 comentários
  • Era linda uma Espanha que fosse como a Suíça relativamente ao respeito ao ser periférico. Penso que é impossível, pelo menos eu não creio que o chegue a ver, mas era giro, sim.

    • Também não tenho grandes esperanças. Mas pelo menos não se pode dizer que não existe um modelo…

  • O da Espanha é praticamente impossível. Onte estivem vendo o pleno do Parlament (coma moitos), e a líder de Ciudadanos e o líder do PP estavam falando na língua castelã… no Parlament! A escusa que dérom foi que moita gente de fóra da Catalunya os estava vendo. Mais isso nom é escusa! Primeiro, porque na tele já avia um intérprete que estava traduzindo as verbas dos deputados. E segundo, porque o catalám é ũa língua que bem se entende.
    Enfim… e isto só na Catalunya. Imagina cal deve ser a atitude da Espanha monolingue, que nem moi a gosto está co inglês… E que se assusta de que na Catalunya estudem catalám (ou, na Galiza, o galego). Até falam de “imposiçom”, cando iles som os primeiros que imponhem o castelão em territórios alheios.
    A ideia é boa, mais; desafortunamente, a Espanha nom é a Suíça. Os catalães já se decatárom disso e acho que vós tamém. Senom, pra que vos fóchedes no 1640?

  • Um pequeno apontamento: a Suíça é uma confederaçom só em nome (por questões históricas). Em realidade é uma república federal e a autonomia dista e muito da independência (garantindo a unidade polas armas no seu dia). O que si é verdade é uma verdadeira vida democrática e um respeito absoluto ao poder soberano dos cidadãos dos cantões que conformam a federaçom com referendos habituais. Os referendos federais têm ademais a peculiaridade de que para serem aprovados precisam duas cousas:
    – Uma maioria de votos a favor do total de votos emitidos em toda a federaçom (é dizer, tomando toda a federaçom como circunscriçom única).
    – Uma maioria de cantões a favor do total de cantões, entendendo como cantões a favor os cantões com maioria de votos emitida a favor na circunscriçom cantonal.
    De tal jeito que os cantões densamente populados nom podem impor medidas no resto da federaçom, e vice-versa.

  • Falando do Romanche, ao que parece soa igual ao português. Estive uma vez numa reunião em que os técnicos de som eram suíços da região romanche e estavam fascinados com os sons da língua portuguesa que eram iguais aos deles. Noutra ocasião, em viagem de avião da Swissair, estava com uma colega portuguesa a conversar e uma das hospedeiras veio ter connosco para saber que língua era a nossa. Parecia a delas mas não conseguiam perceber uma palavra.

  • E se calhar deste jeito acabavam com os conflitos no estado espanhol; mas também pode ser que não seja esse o seu desejo.

  • O modelo linguístico da Suíça é o mais ajeitado para a Espanha. Seria o mais lógico e justo. Mais não, na Espanha não é possível. Mentres a Suíça é um Estado democrático, a Espanha é um Estado imperialista. E os imperialistas, como são uns brutos, sempre estão a impôr a sua lei. Portanto, não há que estranhar-se que muitos não queiramos ser espanhóis.

  • Minha dúvida é se existem publicações em romanche. Vi alguns vídeos de pessoas falando e achei linda.

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