Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O que é a norma do português?

Para conseguirmos pensar de forma mais concreta na questão da variação e da sua relação com a norma, apresento uns estranhos símbolos e um conceito interessante usado pelos linguistas.

Comecemos pelos símbolos. Existe um alfabeto fonético internacional, que permite descrever o melhor possível os sons das várias línguas. Nesse alfabeto, o som que hoje escrevemos como «ch» é representado pelo símbolo «ʃ». Assim, a palavra «chá» representa-se, neste alfabeto, assim: /ʃa/. Usei as duas barras que representam, para os linguistas, a transcrição fonológica.

Ora, em português, havia uma distinção entre dois sons que hoje são apenas um: /ʃ/ e /tʃ/. O primeiro era representado por «x» e o segundo por «ch». Hoje, são o mesmo som, mas era habitual que a pronúncia do primeiro som de «chave» e «Xavier» fosse diferente – a primeira palavra soaria a «tchave».

Pois bem, a distinção já não existe em português – de Lisboa (e não só). Mas é preservada nalgumas regiões de Trás-os-Montes. Investigando e ouvindo com atenção, podemos traçar uma linha entre os territórios que preservam a distinção e os que não preservam a distinção (onde se incluem as grandes cidades do país).

Esta linha chama-se, em linguística, isoglossa. Uma isoglossa não separa dialectos, mas sim traços individuais:

  • um vocábulo particular – podemos desenhar uma isoglossa entre os territórios que usam «anho» e os que usam «cordeiro»);
  • uma característica gramatical – podemos desenhar uma isoglossa entre os territórios portugueses onde se usa a terminação «-em» para o pretérito perfeito («eles fizerem») e onde se usa a terminação «-am» («eles fizeram»), território este onde se incluem as cidades e, por isso, a norma;
  • um determinado som – podemos desenhar uma isoglossa entre as regiões onde se distingue o /ʃ/ do /tʃ/ e os restantes territórios, ou entre as regiões onde se distingue o /v/ do /b/ e os restantes territórios.

Um mapa com estas linhas será extraordinariamente complexo e irá apresentar divisões que nem notamos – a investigação linguística vai muito mais fundo do que aquilo em que habitualmente reparamos.

Por outro lado, este mapa é dinâmico: as linhas vão mudando ao longo do tempo. Um centro como Lisboa vai empurrando as isoglossas para longe, uniformizando a língua à sua imagem e semelhança. No entanto, muitos traços próprios mantêm-se em cada região: nem todas as isoglossas se movem ao mesmo tempo. Por vezes, criam-se até novas distinções.

Isto tudo para dizer o seguinte: a língua muda. Muda na geografia, na sociedade, no tempo. Com a cada vez maior escolarização da população no último século, as mudanças seguem hoje um caminho comum: em direcção ao uso habitual das grandes cidades, o uso que é considerado, em geral, a base da norma. No entanto, mesmo a norma muda – e isto é impossível travar. Quer dizer que devemos seguir qualquer moda? Claro que não. Devemos apenas reconhecer quando a mudança transforma, de facto, a norma, quando os falantes usam uma determinada palavra ou construção como parte da sua língua desde a infância.

E isto implica também outra coisa: a norma não é linguisticamente mais perfeita que outras variedades da língua. A norma é como é porque os centros de poder ficaram numa determinada posição no mapa de isoglossas que descrevi acima, dando prestígio a determinados usos

Sejamos concretos: quando Camões vivia, é bem provável que Lisboa estivesse a norte da isoglossa que dividia os territórios de distinção entre /ʃ/ e /tʃ/. Desta forma, a norma implicava essa distinção. Com os séculos, a linha subiu, e Lisboa passou a não fazer a distinção. Assim, a norma passou a não fazer a distinção. Não há um aperfeiçoamento das estruturas da língua: apenas calhou que determinada característica tivesse passado a fazer parte da maneira de falar da capital.

Apesar de não ter o carácter lógico e ideal que muitos lhe dão, a norma da língua é importante: o seu uso em várias situações faz parte da maneira como a sociedade funciona. É a base da escrita e de muita literatura. Convém conhecê-la! No entanto, convém evitar um certo moralismo que associa a norma de uma época passada à perfeição – ou então liga a gramática a uma análise lógica a priori, como se fosse possível deduzir as regras da língua a partir da reflexão lógica, e não a partir da observação da maneira como essas regras nos permitem expressar o pensamento lógico (o que é algo muito diferente). Ou seja: quem julga ser possível pensar de maneira mais lógica alterando a máquina gramatical da língua estará a perder tempo.

No entanto, se não há aperfeiçoamento do funcionamento da língua enquanto sistema, há aperfeiçoamento do nosso conhecimento da língua e do uso pessoal dessa língua na escrita e na oralidade mais formal. Esse é o primeiro ponto em que podemos melhorar a língua: o nosso uso pessoal.

Depois, cada sociedade pode dar mais ou menos importância à escrita e ao seu ensino – assim, se uma sociedade iletrada tem, certamente, uma língua completa e interessantíssima na oralidade, o uso da escrita permite que os cidadãos comuniquem com as instituições e uns com os outros à distância, leiam obras literárias e técnicas essenciais, saibam interpretar manuais e avisos, participem na vida política da comunidade, entre muitas outras vantagens. Assim, o segundo ponto em que a língua pode melhorar (ou piorar) é no seu uso escrito: na taxa de alfabetização e no uso concreto desse conhecimento.

Neste século XXI, a língua sofre um desenvolvimento que talvez se aproxime, em importância, da invenção da imprensa ou da expansão da escolaridade: o uso cada vez mais regular da escrita, mesmo num registo informal (na Internet, nos telemóveis, nas redes sociais…). A importância de saber escrever bem é cada vez maior, num tempo em que o uso da língua de cada um de nós está muito exposto. Isto só nos deve levar a sublinhar o quão importante é escrever bem. É importante porque nos permite comunicar sem ruído com muita gente e é importante porque a nossa vida está cada vez mais dependente da escrita. E é ainda essencial porque faz parte daqueles prazeres que ninguém nos deve roubar: o prazer de escrever, sempre com a intenção de escrever melhor, de continuar as conversas em português, pela escrita e pela fala, pelos séculos fora.

O mecanismo da língua lá continua a trabalhar, com os seus ruídos de fundo, a passar de geração em geração, a saltar de cérebro em cérebro…

(Excerto do livro Gramática para Todos.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Sobre a norma imposta pela televisão, seus jornalistas e comentadores, tenho reparado no crescente uso de certas expressões ou pronúncias que considero incorretas. Mas estarão? Ou são a nova norma.
    Por exemplo:

    “Penso de que” quando eu sempre disse e ouvi “penso que”;
    “à séria” em vez de “a sério”;
    “sobre o comando de” em vez de “sob o comando de”;
    tóxico pronunciado “tóchico” e não “tóksico” como ainda se indica nos dicionários;
    e tantas outras do género.
    Será que poderia numa futura crónica abordar estas questões ?
    O meu agradecimento e admiração pelos seus artigos.
    Victor Santos

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