Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é a língua mais falada em Macau?

Aqui temos uma pergunta que parece simples, não parece? E, no entanto, a resposta esconde uma ou duas surpresas. Vamos, então, de viagem até ao outro lado do mundo…

Comecemos por perguntar: quais são as línguas oficiais de Macau? A Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau é clara:

Além da língua chinesa, pode usar-se também a língua portuguesa nos órgãos executivo, legislativo e judiciais da Região Administrativa Especial de Macau, sendo também o português língua oficial.

O chinês e o português são as línguas oficiais.

Não espanta, certo? Tal como também não espanta saber que, hoje, o português é falado por uma ínfima parte da população. Se aterrarmos na cidade — como gostaria muito de fazer um dia — veremos muito português escrito nas placas, mas pouco português nos entrará nos ouvidos.

Mas que língua sai da boca dos macaenses?

Imagine-se um português que aprenda chinês durante anos e anos em Lisboa. Aprenderá mandarim, provavelmente — ou seja, a língua oficial da República Popular da China.

Muito bem: enfiemos tal português num avião em direcção a Macau. O português sai do avião, entra no terminal e olha para as placas. Encontra palavras em português, pois então. Encontra também muito inglês. E, claro, em destaque, os caracteres chineses.

Fonte: Wikipédia.

Enquanto passa pelas avenidas da cidade, o nosso português viajante tem a primeira surpresa: os caracteres nas placas da rua não são bem os que tinha aprendido em Lisboa. São um pouco mais complicados. Enfim, lembra-se de ter falado disso nas aulas: o chinês pode ser escrito com caracteres simplificados ou, em alternativa, com caracteres tradicionais. Estes últimos são usados em Taiwan, fora do controlo do governo da República Popular da China, mas também em Hong Kong e em Macau.

O nosso viajante não se atrapalha: se a escrita é mais difícil do que estava à espera, os seus anos de estudo hão-de ajudar a conversar com os macaenses que não sabem português, certo?

A verdade é esta: quando começa a ouvir as pessoas a falar não percebe quase nada. Estranha aquilo e continua a andar pelas ruas, atrapalhado entre a estranheza duma língua que afinal não compreende e as placas escritas também em português.

Repara então num casal a falar o chinês que tinha aprendido… Um alívio: compreende tudo! Sorri e aproxima-se. Começa a conversar. Percebe então que são turistas de Pequim. Falam mandarim, mas não são dali. Segundo lhe dizem, também não compreendem o que dizem os macaenses quando estes falam entre si.

O nosso português cria então uma teoria: se calhar as pessoas falam um dialecto que ele não conhece. Se ouvir o chinês da televisão, certamente encontrará a língua que aprendeu. Segue para o hotel — não sem ficar muito admirado ao perceber que, ao contrário do resto da China, os carros de Macau circulam à inglesa… (Também acontece o mesmo em Hong Kong, o que será um poucochinho menos surpreendente.)

No hotel, percebe que os funcionários compreendem o mandarim (há até um que fala um pouco de português), mas entre eles falam na tal língua ou dialecto que ele não compreende. No quarto, liga a televisão. Está a falar um ministro do governo de Macau. E o que sai da boca do ministro também não é mandarim!

O que se passa? Ora, o que se passa é que o chinês usado em Macau e em Hong Kong é o cantonês — e isto é assim mesmo em situações formais e oficiais.

Sim, um macaense dirá que está a falar chinês quando fala cantonês — e, no entanto, um chinês de Pequim não o irá compreender. O mandarim e o cantonês são da mesma família linguística, mas são muito diferentes — tanto que aprender um não significa que se compreenda o outro.

No fundo, a situação em Macau e Hong Kong é semelhante a este cenário estapafúrdio: um inglês aprende português em Londres, viaja até à Madeira — onde a língua oficial é o português — e, quando lá chega, percebe que todos falam uma espécie de italiano na rua e na televisão, embora chamem à língua «português». Estranho? Sim, sem dúvida: mas é o que acontece na China.

Mas quão diferente é o cantonês do mandarim?

Reparemos na palavra para «eu». É escrita usando o mesmo carácter chinês: 我. Neste caso, o carácter é o mesmo tanto na versão tradicional como simplificada. Agora, peça-se a um falante de mandarim para ler a palavra. O que iremos ouvir é algo como «wo». Se pedirmos a um falante de cantonês, irá ler algo como «ngóh».

Como conta Robert Lane Greene, no seu excelente livro You Are What You Speak, o actor Chow Yun-Fat, um falante de cantonês nascido em Hong Kong, teve de aprender mandarim para participar no filme O Tigre e o Dragão. Alguns espectadores doutras zonas da China queixaram-se do sotaque do actor… Já em Hong Kong, o filme passou dobrado em cantonês!

As diferenças entre o mandarim e o cantonês são mais do que muitas: o cantonês tem seis tons, o mandarim tem quatro. Mais: as sílabas do mandarim podem terminar numa vogal ou nas consoantes «n» ou «ng» — mas mais nenhuma. Já em cantonês, as sílabas podem terminar numa vogal, mas também em «p», «t», «m» e «k».

Note-se que, na escrita, podemos falar do chinês como uma realidade mais ou menos una — os caracteres podem ser usados para escrever mandarim ou cantonês — até que ponto a língua falada transparece na escrita depende de quem escreve e da situação. Mas, na fala, a unidade do chinês é uma ilusão política. Os dialectos chineses — assim chamados por tradição — são tão diferentes uns dos outros como as várias línguas latinas.

Robert Lane Greene, no mesmo livro, apresenta as seguintes frases como exemplo das diferenças entre estas duas línguas chinesas (diferenças essas que são lexicais, sintácticas, morfológicas…):

  • Em mandarim: «Tian bu pa, di bu pa, zhi pa Guangdong ren shuo Putonghua.» («Não tenho medo nem do Céu nem da Terra; só tenho medo de ouvir um falante de cantonês a tentar falar mandarim.»)
  • Em cantonês: «Tin mh geng, deih mh geng, ji geng bak fong yahn gong gwong dung wah mh jehng.» («Não tenho medo nem do Céu nem da Terra; só tenho medo de ouvir um falante de mandarim a falar tão mal cantonês.»)

O governo chinês tem mostrado muito interesse em promover o mandarim como a língua comum de todos os chineses. Mas o cantonês é falado por milhões e milhões de pessoas e é usado pelos governos de Hong Kong e de Macau, onde existem instituições públicas com a missão de regular a língua e defendê-la. Os sistemas educativos das duas cidades usam o cantonês. Os filmes aparecem no cinema dobrados em cantonês…

Dito isto, se perguntarmos a um chinês de Cantão se fala uma língua diferente do seu conterrâneo de Pequim, é provável que ele diga que não. Para ele, o mandarim e o cantonês são duas formas da mesma língua — e esta sensação tem muito que ver com a escrita.

Já um linguista, admitindo que é difícil estabelecer um critério objectivo para distinguir as línguas, dirá que dois dialectos mutuamente incompreensíveis dificilmente podem ser considerados parte da mesma língua. É esta uma das razões por que é pouco provável que a China passe a usar um alfabeto em vez do complexo sistema de escrita que todos conhecemos: a diversidade oral passaria a estar exposta também no papel.

Uma nota sobre a escrita chinesa: a divisão entre os caracteres simplificados e os tradicionais não corresponde à divisão entre mandarim e cantonês. Taiwan utiliza os caracteres tradicionais e o mandarim como língua oficial na fala. Hong Kong e Macau usam também os caracteres tradicionais, mas o cantonês como língua oficial na fala. Há ainda milhões de chineses no sul da China que falam cantonês e usam os caracteres simplificados, oficiais na República Popular — é provável que aprendam mandarim na escola, enquanto os alunos de Hong Kong aprenderão cantonês.

Há mais línguas na China?

Esta foi uma viagem muito rápida ao país com mais habitantes do mundo. Não quero que ninguém fique a pensar que a paisagem se reduz ao mandarim e ao cantonês. Estas são, de facto, as duas línguas mais famosas —uma por ser oficial na República Popular e em Taiwan e a outra por ser oficial em Hong Kong e Macau. Mas, além destas duas, existem outros dialectos que podemos, sem medo, considerar línguas tendo em conta o grau de diferença que apresentam.

Mas a paisagem linguística da China é ainda mais espantosa do que fariam supor as diferenças entre as várias línguas que se escondem na língua chinesa — há, na China, línguas que não estão relacionadas com o chinês nem usam o mesmo sistema de escrita. Uma delas — o uigur — usa o alfabeto árabe… É assim que um português desprevenido que passe em Xinjiang (que fica muito longe de Macau) ficará surpreendido por ver esta placa com a escrita árabe por cima da escrita chinesa (a foto vem daqui).

Fonte: Wikipédia
E as traduções?

Já saberá o leitor que passo parte dos meus dias envolvido em traduções. Pois bem, quando um cliente pede à minha empresa algum trabalho relacionado com o chinês, há que ter em conta que a palavra «chinês» pode querer dizer várias coisas:

  • Se o cliente precisar de um intérprete para uma reunião com um empresário de Hong Kong, é provável que precise de um intérprete que saiba cantonês — embora também seja provável que o empresário saiba bastante bem inglês…
  • Se a reunião for com um empresário de Pequim, é bem provável que a língua que vai sair da boca do tal empresário seja o famoso mandarim.
  • Já se o cliente precisar de traduzir um texto de português para chinês para ser usado em Hong Kong, Macau ou Taiwan, o importante é saber que os caracteres serão os tradicionais.
  • Já se o texto for para ser usado no resto da China, teremos de usar os caracteres simplificados.

Enfim, o melhor é mesmo esclarecer tudo isto antes de começar à procura dos intérpretes ou tradutores… Ninguém disse que isto era simples.

A escrita e a fala são sistemas diferentes em todas as línguas — ninguém fala como escreve nem a escrita expressa perfeitamente tudo o que ouvimos. No caso do chinês, esta verdade linguística é ainda mais visível do que o habitual: afinal, um habitante de Pequim compreende o que escreve um habitante de Hong Kong, mas não compreenderá praticamente nada do que lhe sai da boca…

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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15 comentários
  • Estive em Macau em julho de 2017 para um congresso e pela primeira vez, e posso confirmar tudo quanto escrito neste ótimo artigo, real e emblemático. Sáo poucos os portugueses em Macau, e muitos são professores ou estudiosos. Há vários restaurantes portugueses onde se pode comer bem. Em Macau é deveras difícil comunicar pois é necessário saber falar mandarim ou dialeto, um pouco de português antigo e mais uma pitada de inglês com sotaque oriental. Mas o mais confortante é poder encontrar em todas as ruas bons pastéis de nata! Então sim, como portuguesa fiquei regalada.

  • Sim, na RPC existem 56 diferentes povos (etnias), não esqueçamos que o país de hoje foi unificado através de muita violência, a História dele é feita de guerras e destruição pela etnia dominante, que constitui mais de 90% da população total, os Han: a teoria de que o maior número tem maiores direitos, direito à dominação das minorias. E muitos desses povos continuam a tentar recuperar a sua autonomia até hoje, apesar da dura repressão, cada vez mais dura. Existem tantas línguas (dialetos) quantos os diferentes povos e também regiões, “unidos” apenas por uma escrita comum, os hanzi (caracteres chineses, escrita dos Han, em pinyin), por isso todos os filmes e programas de televisão são legendados. Em Macau, sendo o povo português considerado colonizador, o inimigo, evita-se falar português em público, mas muitíssimas famílias e pessoas o usam em privado, em casa e na igreja, porque o português ainda é a língua do catolicismo nesta região, o cantonês é a língua que usam normalmente, porque também não gostam do chinês (língua oficial da RPC), e também o inglês, por causa dos casinos, em número superior a 40 e com uma rentabilidade total 7 vezes superior aos de Las Vegas. O preconceito na RPC é enorme, contra tudo e contra todos, especialmente estrangeiros, sejam eles quem forem.

  • É impressionante como com em apenas num artigo bem feito se aprende coisas que durante até mesmo uma viajem de um mês a China nâo se aprende.

    O Senhor Marco está de parabéns pelo seu blog, devo confessar que da minha parte este é um dos melhores blogs que eu sigo.

    Quanto ao Cantônes, Chinês, Javanês e o Mandarim, é como a comida lá em casa, não sei cozinhar mas gosto muito de comer, ou seja não sei falar mas gosto muito ouvir os que falam.

    Gostaria de saber se o “Javanês” também faz parte da mesma família de língua?

  • Olá ! Achei muito bom esse blog falando a respeito de Macau, tenho muita vontade de conhecer a Ásia, mais não falo nenhum idioma oriental, nem inglês, só português, gostaria de saber se só com o português dá pra se virar em Macau, grato. Mauro.

  • Apreciei muito o seu artigo “Qual é a língua mais falada em Macau?”.

    Para além de estar redigido de forma aliciante, o seu texto fez-me recordar a minha aprendizagem do Mandarim (1975-1978) e a minha posterior visita a Macau.

    Vou ler mais artigos seus.

  • A diversidade linguística na China pode ser considerada semelhante ao que se encontra no Brasil , Portugal, Angola e outras regiões onde se fala português ? Ou seja , na parte escrita todos se entendem mas na parte falada tudo se torna mais difícil . Um português da ilha da Madeira , um brasileiro do sertão da Paraíba e um angolano do interior certamente tem muitas dificuldades de comunicação oral entre si…

    • Diria que sim, mas a uma escala diferente… As diferenças entre o mandarim e o cantonês serão comparáveis às diferenças, por exemplo, entre o português e o italiano. Há também instituições que regulam o cantonês, que é tratado como língua com uma norma própria. Mas, sim, a comparação faz sentido.

  • Ótimo e elucidados artigo. Mesmo aqui no Brasil temos as nossas “diferenças linguísticas” devido à forte influência indígena, africana e de colonizadores europeus no final do século XIX. Na minha região, por exemplo, temos forte influência do alemão, e ainda usamos a língua de maneira informal. Mas nenhuma língua é mais bela que a de Camões, Gil Vicente e Fernando Pessoa; a última Flôr do lácio.

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