Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é a origem de «obrigado»?

Quando queremos agradecer a alguém, usamos a palavra «obrigado». Qual é a origem desta interjeição? Façamos mais uma viagem ao passado das palavras…

Uma palavra dividida em duas

«Obrigado» vem do particípio passado do verbo latino «obligō». Este, se escavarmos um pouco, veio da raiz indo-europeia «*leyǵ-», que significaria ligar – e, diga-se, o verbo português «ligar» tem a mesmíssima origem indo-europeia.

Isto é interessante, não tenho dúvidas, mas mais interessante será ver que esta viagem não explica a origem da nossa fórmula de agradecimento. Afinal, a origem que descrevi acima é a mesmíssima origem da palavra «obligado» do castelhano – e um espanhol nunca diz «obligado» para agradecer seja o que for.

«Obrigado», na verdade, são duas palavras (pelo menos).

Temos a forma «obrigado», particípio passado do verbo «obrigar», que às vezes se disfarça de adjectivo. Este «obrigado» aparece em frases como «Fui obrigado a abrir a porta.» ou «Eu sou obrigado a virar à esquerda naquele cruzamento.». É uma palavra com vários usos e tem origem no latim. Corresponde, sem grandes discrepâncias, ao «obligado» castelhano.

Mas, depois, temos o nosso amigo e conhecido «obrigado» como fórmula de agradecimento. Muitas línguas têm uma interjeição com este significado:

  • inglês: «thanks»
  • francês: «merci»
  • castelhano: «gracias»
  • alemão: «danke»
  • japonês: «arigatō»
  • português: «obrigado»

E podíamos continuar por aí fora… Algumas das palavras acima têm variantes, mas estas são as mais comuns.

Quando surgiu o «obrigado» de agradecimento?

A origem de cada uma destas fórmulas é distinta.

O «thanks» inglês terá origem na expressão «thanks to you», ou seja, «graças a si», o que será parecido ao percurso que levou às fórmulas castelhana e alemã. (Curiosamente, uma forma rara de agradecimento no inglês é «obliged», que lembra a nossa fórmula.)

O «merci» francês teve outra origem, semelhante à origem da nossa expressão «Vossa Mercê», o que nos leva a concluir que o «merci» francês e o «você» português têm uma origem comum.

Já a palavra japonesa parece lembrar a palavra portuguesa. Haverá alguma relação? Já lá chegamos.

A interjeição portuguesa «obrigado» surgiu a partir de expressões mais complexas, como eram as fórmulas finais nas cartas, tais como «Muito Venerador» e «Obrigado a Vossa Mercê».

Com o tempo, aquele «obrigado», que tinha a tal origem latina muito antiga, começou a deixar para trás – sem o perder por completo – o sentido original de obrigação e passou a ser usado como fórmula fixa. Por outras palavras: a forma verbal «obrigado» transformou-se na interjeição de agradecimento típica da língua portuguesa. Digamos que a palavra decidiu saltar de categoria – e reinventar-se. No entanto, a palavra anterior («obrigado» como forma verbal) não desapareceu. Dividiu-se em duas…

Agora, o ponto mais interessante: esta reinvenção da palavra é muito mais recente do que pensamos. Só no século XIX começamos a ver surgir nos nossos textos o «obrigado» com o sentido de agradecimento que lhe damos hoje. Imagino que, na oralidade, o uso seja um pouco mais antigo. Mas tudo indica que Camões não dizia «obrigado!» quando alguém lhe dava alguma coisa…

Como agradecíamos antes do «obrigado»?

O que acabei de contar deita por terra a teoria de que a palavra tem uma ligação profunda à alma portuguesa, como já cheguei a ouvir por aí – estas teorias que ligam esta ou aquela característica linguística ao carácter nacional são sempre muito suspeitas.

Por outro lado, a ideia de que o «arigatō» japonês teve origem no «obrigado» português revela-se, assim, um belo anacronismo. É engraçada, mas não parece possível. Há outras palavras de origem portuguesa no japonês, mas os japoneses já diziam «arigatō» antes de nós dizermos «obrigado» com o mesmo sentido.

Como agradeciam os portugueses antes desta transformação tão recente? Há outras expressões de cortesia na língua: «agradecido»; «bem haja»; «grato»… A certa altura, as tais fórmulas pomposas das cartas começaram a desbastar-se e daí surgiu mais uma fórmula de cortesia: o nosso conhecido «obrigado».

Esta nova interjeição acabou por se espalhar de tal maneira que, hoje, ultrapassa as fórmulas mais antigas – é o nosso agradecimento típico e uma das primeiras palavras que um estrangeiro aprende quando começa a falar português. Não era assim há 300 anos.

Como sempre, a língua continua a moldar a palavra e a reinventá-la. Já não temos só o «obrigado», mas também o «muito obrigado» ou o «obrigadíssimo» – e ainda o levemente irónico «obrigadinho».

Uma interjeição peculiar

Há ainda um pormenor curioso. A forma verbal «obrigado» varia em género e número. Uma mulher dirá «estou obrigada a cumprir a regra» e um grupo dirá «estamos obrigados a realizar a tarefa».

Ora, quando a forma verbal se transformou numa interjeição de agradecimento, seria de esperar que ganhasse as características das interjeições. Uma delas é esta: uma interjeição não varia em género e número. Por esta lógica, o «obrigado», quando é interjeição, deveria ser sempre «obrigado» e nunca «obrigada» ou «obrigados».

No entanto, como vestígio da história que contei, a interjeição continua a variar na boca de muitos falantes — mas só em género. Assim, um homem tende a dizer «obrigado!» e uma mulher a dizer «obrigada!». Já a variação em número quase desapareceu: se um grupo disser «obrigados pela atenção!», a expressão será vista como errada (ou pelo menos estranha) por uma grande parte dos falantes. Em contraste, os falantes nunca estranhariam a forma verbal «estamos agradecidos pela atenção», precisamente porque o nosso cérebro de falantes não trata «agradecidos» como interjeição, mas sim como forma verbal.

«Obrigado», no fundo, é uma interjeição que mantém algumas características típicas da forma verbal de onde surgiu — mas não todas. Como a variação em género (mas não em número) de «obrigado» é hoje uma regra de etiqueta do português, é bem provável que esta interjeição que ainda se lembra de ser verbo se mantenha assim por muitos e bons anos.

Dou por terminada esta pequena viagem à origem da palavra «obrigado» — mas não me vou embora sem dizer: obrigado por acompanhar esta página!

(Crónica no Sapo 24. Texto baseado em texto anterior deste website. Revisto a 11 de Janeiro de 2022.)

RECEBA OS PRÓXIMOS ARTIGOS
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

Comentar

23 comentários
    • Um curioso paralelismo do inglês com o português, provavelmente com uma origem semelhante. 🙂 Pelas situações de uso e pela frequência, a verdadeira correspondência com o nosso «obrigado» é o «thanks».

  • Boa noite, Marco,
    Estou de acordo com quase tudo o que diz no artigo sobre o “obrigado”. Contudo, buscando em variadíssimos dicionários, a palavra aparece sempre como adjectivo (portanto, variável) e nunca como interjeição. E logo a primeira acepção é sempre a de “agradecido, grato”.
    Claro que entendo a existência da interjeição, mas, neste caso, ela terá o valor irónico do “obrigadinho”: “Ora obrigadinho, isso já eu sei”, ou “ora obrigado, já sabia isso há muito tempo”. E neste contexto é, de facto, invariável, mesmo em género, porque não se trata de nenhum agradecimento, outrossim, de um “Cala-te, que isso já eu sei!”, ou “que admiração, já sabia isso há muito tempo!”.

    • Independentemente dos dicionários, a palavra comporta-se como interjeição, com algumas particularidades. Quase sempre é dita em certas situações concretas, expressando uma emoção, sem qualificar um nome nem integrar uma oração com verbo. Dificilmente um adjectivo tem estas características. Mas é verdade: é um ponto polémico. O facto de não variar como as formas verbais ou adjectivos (“agradecidos”, “agradecidas”, etc.) é um dos pontos que me levam a considerá-la uma interjeição. Aliás, se virmos a diferença entre duas frases ditas por um grupo, vemos como são palavras diferentes: “estamos obrigados a cumprir a lei!”; “obrigado pelo envio da sugestão”. (No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporâneo, da Academia, está como interjeição.)

      Note-se que estou a falar da palavra no seu uso diário, não irónico, como quando alguém me passa um copo de água e digo “obrigado”. Nunca diria “estou obrigado!”. A palavra transformou-se na interjeição dita naquela situação, não necessitando de nada mais (nem verbo nem nome) para expressar aquilo que queremos.

      Obrigado e um abraço!

  • No Brasil o “grato” está voltando e essa semana alguém me agradeceu dizendo apenas “gratidão”. Já os jovens usam com outros jovens a novíssima palavra usada como agradecimento “valeu!” Que de tão comum usar obrigado está se tornando estranho por aqui, a não ser em conversas formais.

  • Vejam a explicação de São Tomás de Aquino souber a diferença do “obrigado” nos diversos idiomas pois é muito interessante

  • O homem está grato e a mulher grata, por isso ele diz “obrigado” e ela “obrigada”, é assim que explico ao estrangeiros. É a minha modesta opinião na óptica do utilizador.

    • Mas por essa lógica diríamos que nós estamos gratos e, por isso, um grupo (uma empresa, por exemplo) diria “obrigados”, o que não acontece. “Grato” e “grata” não se transformaram em interjeições, mas “obrigado” sim. No entanto, de facto, mantemos a distinção em género e dizemos “obrigado” e “obrigada”. Só não mantemos a distinção em número.

  • Mas se “obrigado” continua a ser considerado uma interjeição, é errado nunca fazer a distinção de género? Como mulher aprendi e sempre disse obrigado e tive que explicar muitas vezes que se trata de uma interjeição…

  • No Brasil, eu diria que a palavra se comporta hoje como qualquer outra interjeição: em situações mais monitoradas, varia em gênero, mas, no dia-a-dia, homens e mulheres dizem, indiferentemente, brigado, sem o ó inicial.

    Entre os menos estudados, há quem pense que se diga obrigado a um homem, e obrigada a uma mulher, isto é, que o gênero varia não conforme o daquele que agradece, mas o daquele a quem se agradece.

  • Isto vai para os reintegratas:
    Esta palabra xurdiu no século XIX, cando a Galiza xa estaba na órbita de influencia castelá desde houbera moito tempo. Despois andan a dicir que Néstor Rego fala en galego cando di OBRIGADO. As palabras grazas ou beizón teñen/ tiveron presenza no galego tanto no medieval, como no popular dos Séculos Escuros, a diferenza deste invento lusista. Unha palabra netamente galega nunca pode ser substituída por unha portuguesa.

  • Em Galiza, na comarca onde eu tenho o meu trabalho diário (concelhos de Frades e Messia, antigamente ‘Mexia’), é comum ouvirem-se na fala das pessoas mais velhas ou de lugares arredados expresões como estas (transcrições reais recolhidas por mim):
    ——“Ai, eu a ela nom lhe tenho obrigaciom ningumha, que tamém nom mo quijo(=quis) vendere…”
    ——“Hei-lhe d’ir ali sempre, hó, que lhe estou bem obrigado polo favor que me fijo(=fez)…”
    Mesmo, num livro tão emblemático como o famoso ‘Galego 1’ (método de língua da autoria do ILG, a entidade isolacionista galega por antonomásia) pode ler-se, na página 72:
    ” Don Antón (…) estaba moi obrigado dos veciños de Vilanova, e quixo (=quis) facer unha festa na que participasen todos”.

  • Pois eu penso que a expressão de agradecimento “obrigado/ obrigada” exprime um sentimento de – por gratidão por algo recebido – ficarmos em dívida, ficarmos devedores, logo com uma obrigação de reciprocidade, para quem no-lo deu ou proporcionou.

  • Obrigada pelo artigo!
    Na língua russa a palavra “obrigado” também tem uma origem interessante.
    “Спасибо” (spasibo) vem de duas palavras: “Спаси” (“salva”, o imperativo do verbo salvar) e “Бог” (Deus), cortando a última letra de “deus”. Foi originalmente usado para agradecer uma pessoa, desejando-lhe ser “salva por Deus” 🙂

  • Obrigado, Marco, pelo seu magnífico artigo sobre “Obrigado”.
    De facto, como todos os seus textos, este é mais um que lemos com veemente interesse, sorvendo a seiva da palavra escorrendo ao longo dos tempos. Um hausto de verdadeira sageza.
    Grato.
    Marcelino Moita

  • Obrigado, prof. Marco Neves. Nunca me tinha apercebido de que se tratava de uma interjeição; identificava a palavra apenas como um equivalente, sinónimo de agradecido; e este, isoladamente, também é, creio, uma interjeição; não é?

    Mas, já agora, sem nunca estar em causa a sua masculinidade, suponha

    (é um “supônhamos”)
    que seria mulher; como é que, formalmente, diria: obrigado ou obrigada?

    • Caríssimo Luís:

      “Agradecido”, isoladamente, não se comporta como interjeição, por vários motivos:

      a) Os falantes fazem sempre a concordância em género e número típico destas formas verbais / adjectivos: “agradecido”, “agradecida”, “agradecidos”, “agradecidas”. O facto de essa concordância não se fazer da mesma maneira em “obrigado” e de haver, mesmo no que toca ao género, bastante oscilação entre “obrigado” e “obrigada” mostra que esta palavra (“obrigado”) está na gaveta das interjeições no cérebro dos falantes; o mesmo não acontece com “agradecido”, em que praticamente ninguém falha.
      b) A forma “agradecido” pode ser integrada num complexo verbal (“estou agradecido”) com o mesmíssimo significado da forma isolada, o que já não acontece com o “obrigado” (“estou obrigado” não é usado para agradecer, no português actual).
      b) A forma “agradecido” tem o significado do verbo: “agradecer” serve para, enfim, agradecer. Já no caso de “obrigado”, a forma isolada tem um significado distinto do verbo “obrigar”. Quando dizemos “obrigado” para agradecer, o sentido de obrigação só existe enquanto resquício histórico, que nem todos os falantes conhecem.

      Espero ter ajudado!

      Um abraço,

      Marco Neves

      P.S. Em resposta à pergunta: diria “obrigada”, por ser essa a regra de etiqueta actual da nossa língua.

Certas Palavras

Arquivo

Blogs do Ano - Nomeado Política, Educação e Economia