Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Pequeno Dicionário de Erros Falsos de Português 

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Esta página deu origem, em 2018, ao livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.

Considerem esta página um exercício de defesa activa da língua portuguesa: quero defendê-la de muitos que por aí andam a dar tiros a belas palavras e expressões da língua. Dizem eles que são erros, quando, em muitos casos, não são erros coisa nenhuma: são apenas palavras e expressões que tiveram o azar de irritar, um belo dia, esta ou aquela pessoa.

Como a língua é muito mais do que aquilo que cada um de nós acha que sabe dela, convém defender as tais expressões, para que a língua não fique mais pobre — ou, por outras palavras, para que nenhum falante seja atacado só porque usa palavras e expressões perfeitamente legítimas da língua portuguesa.

Este dicionário tem duas secções: «Perguntas e respostas» (no final) e o próprio «Pequeno Dicionário de Erros Falsos» (abaixo). A página está em construção permanente e será actualizada sempre que eu encontrar palavras e expressões vítimas de violência linguística (ou receber uma pergunta pertinente). Se alguém tiver alguma ideia, força!

Estão perante uma espécie de hospital das palavras: depois de atacadas, vêm para aqui, onde são celebradas e acarinhadas. Na prática, o meu objectivo é que todos possam aqui vir para arranjar defesas contra quem anda sempre a atirar pedras de português.

Há que dizer ainda que não fujo a uma boa discussão sobre estes termos. Estou aberto a ser convencido que esta ou aquela expressão é mesmo um erro. Tem é de ser uma discussão minimamente civilizada. (Obrigado!)

Agradeço a Fernando Venâncio as sugestões e a ajuda preciosa na compilação desta lista.

Agradeço ainda — sem ironia — aos próprios inventores de erros que por aí andam, em quem reconheço preocupação com a língua portuguesa. É uma preocupação que acredito estar orientada para falsos problemas e que é, estou em crer, contraproducente — mas é quase sempre bem-intencionada e genuína.

(Já agora, uma nota: ao longo dos últimos meses tenho falado de muitos destes erros neste blogue — e espero que não se importem se vos disser que uma parte significativa do livro Doze Segredos da Língua Portuguesa foi dedicada a este fenómeno.)


Pequeno Dicionário de Erros Falsos

«A gente»

Sim, já sabemos que «agente é da polícia». E «a gente» somos nós. Alguma dúvida? Ou já não pode haver várias maneiras de dizer a mesma coisa?

«Copo de água»

Algumas pessoas insistem que a única forma correcta é «copo com água». Bastaria dizer que «copo de água» é a construção usada pelos falantes de português (quase todos, pelo menos) em qualquer situação e com qualquer grau de instrução. Mas, claro, também é preciso explicar que a preposição «de» está aqui a ser usada de forma perfeitamente avalizada pelos dicionários, desde há muito. Dizemos «copo de água», como dizemos «um camião de areia», «um metro de tecido», «um balde de água», etc. Ler também aqui.

«Falem mais alto!»

Sim, ainda há quem não aceite a nova forma da segunda pessoa do plural, que no fundo é igual à terceira. É perfeitamente normal dizer «falem mais alto» e começa a ser visto com maus olhos, em certos ambientes, usar o antigo «falai mais alto». Confesso-vos: gosto muito das antigas formas, mas a língua é como é, não como gostaríamos que fosse. (Para depois ficará a discussão sobre o uso de frases como «Voltem para os vossos lugares!».)

«Fazer a barba»

Há quem insista em «desfazer a barba», porque não estamos a criar barba nova. Não a estamos a fazer. E, de repente, apetece dizer algo tão simples como (vou sussurrar para não assustar ninguém): as palavras podem ter mais do que um significado e, às vezes, o significado depende da expressão que vem a seguir. Sim, o verbo «fazer» quer dizer «cortar» se vier antes de «a barba». Bolas, que a língua é tramada. Pois é, pois é… Também aqui: Linguagista | Ciberdúvidas.

«Espaço de tempo»

Este é um erro falso que muitos espalham por aí como se fosse um crime lesa-Física dizer «espaço de tempo». Ora, não é. Ninguém acha que o espaço e o tempo são a mesma coisa só porque usamos uma expressão deste tipo. Aliás, o nosso cérebro parece ter uma tendência inata para falar do tempo usando expressões espaciais. Dizemos: «andar para trás no tempo», «vamos em frente com este projecto» e outras expressões do género. Usamos linhas para discutir os tempos verbais. E, sim, dizemos «no mais curto espaço de tempo possível». Claríssimo e tão lógico como «vamos em frente com este projecto». Que «espaço de tempo» faça algumas pessoas torcer o nariz é apenas um azar da expressão: alguém se lembrou um dia que a expressão era estranha (uma metáfora, onde é que já se viu?) e, pronto, o mito de que «espaço de tempo» é erro pegou… Ver também: Ciberdúvidas.

«Mal e porcamente»

Ainda hoje (9 de Dezembro de 2016) andou pela RTP não sei quem a espalhar que a expressão correcta é apenas e só «mal e pArcamente». Porquê? Porque é essa a suposta origem da expressão «mal e porcamente». Vai daí, temos de manter a pureza dessa donzela. Logo, «mal e porcamente» é erro. Como soube disto? Porque vi, no Facebook, loas a quem assim nos ensinava bom português. Ah, o que dizer? Talvez isto: como em todas as áreas, o desconhecimento deixa-nos indefesos perante ideias erradas. Mais: queremos à força respeitar a língua e sentimo-nos bem quando alguém nos parece ensinar alguma coisa. Tanto que nos deixamos levar por quem inventa erros, sem ter o trabalho de ler e ouvir com respeito os escritores e bons conversadores da nossa língua — que dizem «mal e porcamente» desde há muito. Aliás, é difícil encontrar alguma obra ou página ou pessoa que diga «mal e pArcamente», excepto em obras, páginas ou pessoas que insistem em mudar a língua à força. Isto sabem o que é? Falta de respeito pela boa língua portuguesa, uma língua que tem essa excelente expressão: «mal e pOrcamente».

«Não há nada»

Sim, há quem corrija «não há nada» para «há nada». Razões? Se só temos uma negativa lógica, só podemos ter uma palavra que exprima essa negativa. Deita-se assim ao mar o funcionamento da negativa em português — e, diga-se, em muitas línguas latinas. Sim, nós dizemos «não há nenhum» com o sentido de negação única, dizemos «não há nada na sala» para dizer que a sala está vazia, etc. O inglês funciona de maneira diferente? Bem, o inglês-padrão, sim. Mas, e depois? Quanto aos medos relacionados com a lógica, repare-se como o nosso cérebro interpreta bem a frase «Não há nada que não me aconteça!» como significando «Acontece-me de tudo!» Sim, uma coisa é a lógica do pensamento, outra é o número de palavras que a nossa sintaxe nos obriga a usar para expressar uma negativa. Ler também aqui.

«Pelos vistos»

Sim, é uma expressão fixa, que significa algo como «parece que». No entanto, há quem diga que só o singular é lógico: «pelo visto». Ora, por essa lógica dizer «sempre vens hoje?» também parece pouco lógico: não é sempre, é só hoje; não é «pelos vistos», porque não há plural. Ora, habituem-se: a língua portuguesa tem esta expressão fixa e dificilmente a matam, que me parece estar aqui para as curvas. Ou para a curva.

«Para além disso»

Ainda há pouco tempo li quem quisesse banir esta expressão. Porquê? Porque é uma redundância. Ah, o medo! E, no entanto, a redundância é uma das características essenciais das línguas humanas. Sem ela, não seria possível comunicar. (Tento explicar isso neste artigo.) Pois bem, o que propunha quem proibia «para além disso»? Estas duas expressões, supostamente mais correctas: «além de» ou «para lá de». Mas porquê? Porquê? Se a segunda destas expressões até tem o mesmo número de palavras… Será uma questão de número de caracteres? Mas então?… Temos mesmo de escrever em forma de telegrama, com o menor número de caracteres possível? Ou o problema será existirem várias expressões para dizer a mesma coisa? Querem mesmo uma língua ali no osso, só com as palavras essenciais e mais nenhuma? Camões nunca teria escrito Os Lusíadas se a nossa língua fosse essa espécie de matemática aterradora em que só podemos ter uma expressão para cada significado e sempre a expressão mais pequena possível… Enfim, «para além disso» teve o azar de servir como exemplo para o tal medo da redundância. Vai daí, aparece num artigo qualquer sobre «erros». Resultado? Nada: ninguém fica a escrever melhor por evitar esta boa expressão.

«Queria um café, por favor.»

Ui, a velha piada que tantas vezes se ouve: afinal, uma pessoa se quer um copo de água agora não devia dizer «queria», no passado, certo? Errado. Muito errado. Os tempos verbais têm usos mais complicados do que parece à primeira vista. O pretérito imperfeito também serve para expressar cortesia. É o imperfeito de cortesia. Ah, sim, eu sei, esta frase é dita quase sempre em tom de gozo. É uma brincadeira. Pode ser: mas uma vez por outra lá encontramos casos de pessoas que acreditam piamente na brincadeira. E, para dizer a verdade, a falta de fundamento desta crítica é exactamente do mesmo tipo dos outros erros falsos.

«Saudades tuas»

Sim, há quem insista em «saudades de ti» como única opção correcta. Porquê? Não consigo vislumbrar razões, mas presumo que seja porque «tuas» significa posse e as saudades não são da pessoa que está longe, mas de quem as sente. Depois, como há quem não admita a existência de duas construções diferentes com o mesmo significado, optam pela que lhes parece mais lógica. Será isso? Ora, só temos de perceber isto: em todos os registos, os portugueses usam «saudades tuas» e «saudades de ti», preferindo uma ou outra por razões de ritmo, de gosto ou por causa do vento. O resto são lógicas externas à língua, que — se fôssemos acreditar nelas — nos deixariam a língua mais pobre. Ler também aqui: Ciberdúvidas | Linguagista | Certas Palavras.

[Em construção.]


Em breve: «o comer», «de que», «voltem para os vossos lugares», «o que te estou a dizer é verdade», «terramoto», «lol», «bué», «a semana passada, fui…», etc.


Perguntas e respostas

«O que são erros falsos?»

São construções ou palavras que uma grande maioria de falantes usa em situações perfeitamente adequadas e, mesmo assim, são condenadas por algumas pessoas, com base em justificações que pouco têm que ver com o funcionamento da língua.

Os erros falsos podem também ser chamados de «hipercorrecções». As hipercorrecções aparecem, em geral, por desconhecimento do funcionamento da língua e também por razões de insegurança linguística.

«Mas é assim tão fácil criar erros falsos?»

Parece que sim. Quem os anda por aí a propalar serve-se dum qualquer livro que encontrou, antigo e bem-sonante, claro, ou então faz mesmo o serviço completo e inventa-o na hora. Como há por aí muita insegurança linguística e a ideia um pouco exagerada de que ninguém sabe falar ou escrever bem, muita gente está disposta a aceitar que a palavra X ou a construção Y é erro só porque alguém se lembrou de dizer que sim.

«Qual é o problema destes erros? Faz algum mal condená-los?»

O combate que algumas pessoas fazem a estas expressões tem consequências negativas para os falantes do português: diminui a expressividade da língua e as opções que temos ao nosso dispor e, se acabar por criar uma verdadeira resistência à expressão entre os falantes cuidadosos, leva a um maior afastamento entre a norma e o uso, com consequente reforço de preconceitos sociais inúteis. Para além disso, é uma forma simplista de encarar o português.

Evitar estes erros falsos não serve para falar de forma mais clara nem mais expressiva, e decorá-los à força dá-nos a falsa sensação de estarmos a aprender a escrever melhor, quando no fundo estamos apenas a decorar superstições da língua.

Estes mitos da língua só nos atrapalham, fazem-nos perder tempo e deixam-nos mais confusos sobre como melhorar o nosso uso da língua. Falar e escrever melhor é muito mais difícil do que decorar esta ou aquela irritação pessoal.

«Estes erros falsos surgem porquê?»

Boa pergunta. Talvez insegurança, talvez necessidade de dizer alguma coisa, talvez vontade de corrigir a decadência da língua que algumas pessoas vêem à nossa volta. Como é que isto se faz inventando erros onde eles não existem é algo que me ultrapassa.

«Algumas destas expressões parecem, de facto, ilógicas. A lógica não é um bom critério para definir um erro?»

A lógica é um excelente critério quando estamos a falar das nossas ideias. Quanto à expressão dessas ideias por meio da língua portuguesa, o nosso objectivo deve ser a clareza e a beleza do discurso e, para isso, temos de conhecer a língua tal como ela funciona na realidade e não como funciona num mundo imaginário onde podemos impor as nossas lógicas superficiais, de que nos lembrámos num dia qualquer. Reparem: se quisermos impor uma lógica absoluta à língua, temos de acabar com os verbos irregulares, com expressões idiomáticas, com muitas metáforas — e temos ainda de riscar do mapa muita poesia e muita literatura que se baseia em ambiguidades e em paradoxos.

Não: a língua não funciona através duma lógica superficial que impomos de fora. Temos de ser lógicos e coerentes no pensamento — e, para expressar esse pensamento, temos de conhecer a língua, que é uma floresta de hábitos antigos ou novos, por vezes muito pouco lógicos. Se a língua pudesse ser arrumada à força, já não seria esta língua, mas outra coisa qualquer, bem mais mecânica e muito diferente do nosso português.

Reparem: concretamente, qual é a desvantagem de usar expressões que alguns dizem serem pouco lógicas, como «tenho saudades tuas» ou «pelos vistos» ou «espaço de tempo»? Ficamos a pensar de forma menos lógica? Não! O que dizemos é pouco claro? Não! São expressões do registo familiar? Não!

Não melhoramos nem a língua nem a nossa vida de falantes ao atacar estas expressões. Não percebemos bem como se encaixam na gramática do português? Então é porque ainda não percebemos bem a gramática do português…

«Não é melhor sermos cautelosos e não ir a correr atrás do uso?»

Sem dúvida. Lá porque uma expressão é usada por muita gente não a torna imediatamente aceitável em todas as situações e em todos os registos. Mas quando uma expressão é usada por bons escritores, por falantes de todos os níveis de instrução e em todas as situações e revela já o funcionamento real da língua, tal como ela existe, parece-me que deixa de haver razões para recusá-la, mesmo que alguns falantes ainda tentem evitá-la por apego a regras mais antigas (ou a mitos muito recentes). Se a expressão for ambígua ou feia, evite-se, então, por razões de clareza ou de estética. Mas não se condene essa mesma expressão em frases onde não há ambiguidade ou onde até soa bem (e todos sabemos como o soar bem varia de ouvido para ouvido, às vezes até na mesma pessoa…).

«Como inventar um erro falso?»

O segredo bem escondido dos inventores de erros é este: é possível inventar razões para considerar como erro praticamente todas as expressões ou palavras do português! É só preciso imaginação.

Dou um exemplo, que inventei mesmo agora… A pergunta «Sempre vens?» — grande erro que aqui temos! A pessoa quer dizer «afinal, vens ou não vens?» e enfia para ali a palavra «sempre», que não tem esse significado. Toca de chamar à pergunta um grande erro. A língua portuguesa lá fica mais diminuída, mas os inventores de erros não querem saber disso. (Bem, espero não estar a dar ideias… Nota para os espíritos mais literais: «Sempre vens?» está correctíssimo!)

Se acham que estou a exagerar na caricatura, reparem que há gente que não gosta da expressão «fazer a barba» porque não fazemos, de facto, a barba.

Pego ainda na frase que escrevi acima e que dificilmente terá levantado suspeitas a quem me lê: «É só preciso imaginação!»

Será uma frase errada? Não, não é. Mas é fácil criar razões falsas para levar muita gente a crer que está errada. Por exemplo: que «preciso», neste caso, pede um verbo e não um substantivo (se a regra parece absurda — e é — basta usar uns termos bem-sonantes para assustar). Podemos ainda adiantar que «é só» deve ficar «só é» por razões que rapidamente alinhavamos, cheios de certeza e fúria. E podemos ainda dizer o seguinte (e aqui já não estou a inventar): o «preciso» tem de ser «precisa» para concordar com a imaginação.

Repare-se que muitos inventores de erros disfarçam o disparate com termos técnicos (que até estão correctos noutros contextos) e muita lógica avulsa (que nos parece sempre razoável se vivermos em estado de insegurança linguística). Mas, no fundo, muitas das suas supostas regras fazem tanto sentido como dizer que a seguir a «preciso» temos de usar um verbo. Porquê? Porque hoje me apetece.

No fim, os inventores dizem-nos algo como: é prova da decadência do português que alguém diga «É só preciso imaginação!» e não o mais correcto «Só é preciso imaginar!»

Nós, que somos contra a decadência da nossa língua (claro!), assentimos e começamos por aí a espalhar o mito: a frase «É só preciso imaginação!» é um grande erro! Tratem da língua! Parem de cair em tal erro! E, pronto, lá matámos mais uma bela frase da língua portuguesa.

Ora, amigos, a língua é mais tolerante do que as nossas ideias apertadas. «É preciso imaginação!»; «É precisa imaginação!»; «É preciso imaginar!» — tudo construções aceitáveis na nossa bem flexível língua portuguesa.

«Muito bem. Mas, então, o que são erros verdadeiros?»

São construções e palavras que não obedecem às convenções ortográficas (no caso da ortografia) ou à gramática do português-padrão («gramática» no sentido preciso que lhe dão os linguistas, ou seja, o conjunto de regras que os falantes de português-padrão têm na cabeça). Os erros verdadeiros são, normalmente, distracções ou, então, revelam dificuldade no uso do português-padrão, principalmente no que toca à escrita.

Erros verdadeiros são os erros ortográficos («há» em vez de «à») ou gralhas (escrever «parlamnto» em vez de «parlamento»), os erros sintácticos óbvios («digo já te o que acho»), os erros de adequação (dizer um palavrão numa situação formal ou usar uma construção de cariz regional numa situação em que se pede o português-padrão, como dizer «eles fizerem» no parlamento) — e a lista continua.

Pois é. Erros verdadeiros há muitos. Não é preciso inventar mais.

«E agora, como é que eu aprendo a escrever bem?»

Sim, é verdade: desfazer a doce ilusão de que aprender bom português é decorar listas de erros pode criar alguma ansiedade nos inseguros. Mas não temam: a receita existe há muito tempo. É preciso ler muito, escrever muito, falar muito — e estar atento. Não há volta a dar. Mas, também, convém perceber que a gramática quase toda da língua portuguesa já a sabemos desde pequenos: o problema está na fronteira entre o que é ou não é parte da norma — e está também na escrita, que exige muita luta para ser clara, precisa e agradável.

Não pensem que não me preocupo com a língua. Chamem-me para a luta contra as gralhas, contra os erros de tradução (é uma luta diária, que implica reconhecer que estes aparecem no nosso próprio trabalho). Chamem-me até para a luta contra os estrangeirismos excessivos. Se quiserem, vamos lá lutar contra a mistura de registos (mas não se esqueçam que às vezes essa mistura até é saborosa). Também me parece importante lutar por uma ortografia estável. Chamem-me, sem hesitações, para a guerra a favor do aperfeiçoamento do estilo da escrita de muitas instituições. Mas não me chamem para lutas absurdas contra a boa língua portuguesa, como ela existe nos lábios de quem fala e nas mãos de quem escreve.

Esta página deu origem, em 2018, ao livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.

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27 comentários
  • Marco, aqui no Brasil (não sei quanto a Portugal) costuma-se dizer que uma mudança verdadeira na vida de alguém tem de ser de 180 graus, porque se você muda 360 graus voltou ao ponto de partida, portanto tudo continua igual ao que era antes. Discordo. Tanta coisa pode mudar na nossa vida depois de um giro de 360 graus. Heráclito dizia que nenhum homem toma banho duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez que põe o pé nas águas elas já não são as mesmas que banharam seus pés da primeira vez, nem ele é o mesmo homem. Não creio que a expressão “mudar 360 graus” tenha conotação matemática. Ela toma emprestado da matemática a ideia de um círculo completo, de uma volta inteira, mas seu objeto é a vida, a pessoa, e não o cálculo geométrico: volto ao ponto de onde parti (como o homem de Heráclito que pela segunda põe o pé nas águas), mas não sou mais o mesmo. Por outro lado, uma mudança de 180 graus sempre me pareceu uma mudança incompleta. O que você acha? Um abraço do Brasil.

    • Estou de acordo consigo. Apesar de ser um homem de ciência, concordo que o sentido da «volta de 360º» não deve ser interpretado de forma estritamente matemática. Temos de ser mentalmente mais desenvoltos que isso. A sua explicação é excelente.

  • Falando em erros,

    Na minha Cidade, SÃO PEDRO DA ALDEIA, muitas pessoas se referem a quem é NATURAL dessa Cidade como sendo ALDEENSE, e outras (como eu), como sendo ALDEIENSE. Por isso, vale o questionamento:

    Qual a forma correta, AldEEnse ou AldEIEnse ? Ou ambas estão corretas ?

    (Por gentileza, explique gramaticamente a resposta !)

    • Também tenho deparado com inúmeros casos de palavras com sufixos, derivações várias, em que parece muito complicado encontrar uma boa “saída”. Ora, o que me tem orientado resume-se a dois ou três princípios: 1º e mais importante: devemos aceitar a solução em voga na comunidade em causa, mesmo que nos pareça contrária às regras oficiais, isto é, quase sempre encontraremos uma razão de fundo para a justificar; 2º – devemos saber que nem todas as palavras portuguesas têm um étimo latino, o que contribui, como no caso de aldeia, para o uso de variantes que divergem da norma, do padrão oficial da língua. Aproveito para dizer aquilo que toda a gente já sabe: a palavra aldeia não é derivada do latim que para essa designação (aproximadamente) usa o termo “vicus”, donde o acusativo “vicum” de cuja forma sincopada “vicu-” derivou, por ex. o nome da cidade galega Vigo. De “vicus” provém palavras como na expressão “(caminhos) vicinais” e talvez vizinho.
      Por fim, parece-me que a solução que sugere, “aldeiense” se aceita como bem possível. Claro, se se pretender falar de um natural de uma qualquer aldeia (e não do topónimo que destaca!), então o adjectivo deve ser “aldeão” (Atenção: neste último caso, cuidado com a formação do plural e do feminino, casos em que praticamente todas as variantes são aceitáveis.).

  • Claro que os inventores e correctores do Português que por aí pululam, vão referir que este é apenas um blog e esta apenas uma entrada de tantos outros blogs.(*)

    Cabe ao Marco Neves demonstrar que tem (tanto) direito de reclamar, como os tais ‘reclamantes profissionais’.

    “…Tem licenciatura em línguas (quem diria?) e mestrado na área da literatura.

    É director do escritório de Lisboa da empresa de tradução (…) e docente de várias disciplinas de Prática da Tradução na Faculdade de (…)….”

    🙂

    (*) Sei que foi cunhada/existe a palavra BLOGUE, mas parece-me que não cairá em uso… a não ser pelos profissionais.

  • Pelos vistos,acima escritos, sou levada a concordar com o exposto.
    Preciso, no entanto, de fazer uma leitura mais cuidada.
    Sou gente miúda.
    Por favor, corrija alguma incorrecção que eu possa ter cometido nesta minha resposta.

  • Gostei muito,aproveito para o felicitar, e aceitando o seu desafio aqui fica uma questão;

    É correcto o uso de ” a mim” que por todo o lado se ouve . Dou como exemplo
    pediu-me a mim, pisou-me a mim,foi-me entregue a mim,etc

  • Como alguém que usa e estuda a linguística na sua vida profissional, achei este artigo muito interessante.

    Na verdade, a língua é aquilo que os falantes fazem delas. Mas os falantes têm diferentes origens, diferentes idades, diferentes estratos sociais e económicos, etc. Expressões como “fazer o comer” são tipicamente associadas a estratos sociais mais pobres ou a pessoas com menor nível de literacia. É só um exemplo. É evidente que o português permite as chamadas nominalizações, recategorizando um verbo para um nome pela forma como é posto na frase. É o verbo comer é um entre muitos outros.

    Ao longo do tempo, a língua sofre também mutações, por diversas razões. Por isso não se usa a segunda pessoa do plural, mas a terceira. Numa dada fase, talvez fosse mesmo um erro. Hoje, pelo desuso da segunda pessoa, não o é. Porque, lá está, a língua é aquilo que os falantes fazem dela.

    Também tenho um blog sobre a língua portuguesa, que visa explicar algumas das ambiguidades da língua e corrigir os erros (os verdadeiros) mais comuns, sobretudo cometidos por quem escreve regularmente. Convido o autor deste blog a visitá-lo e a colocar aqui o link. E convido também os leitores do blog a fazerem o mesmo, até porque há aqui algumas questões que explico (como o imperfeito de cortesia).

    http://estudaralingua.blogspot.pt

    • Quanto ao “fazer o comer”, “cheira-me” que decorre do uso de “fazer o que comer” no sentido de “fazer algo que se coma” e que o “que” simplesmente caiu ao longo do tempo. O meu pai – que veio aos 11 anos para Lisboa – dizia exactamente “fazer o comer”, era de perto de Viseu, e depois conheci gente do Norte e apercebi-me que usam expressões que de alguma maneira “completavam” algumas expressões que já conhecia. Quem diz “Norte”, diz Centro, Alentejo, Algarve ou o que for: o que é certo é que muita gente da geração do meu pai (e não só) migrou para o litoral, nomeadamente para Lisboa. Tenho a sensação (de) que há inúmeras expressões em que aconteceu algo semelhante, mas não me está a ocorrer nenhuma… No entanto, dizer que “expressões como _fazer o comer_ são tipicamente associadas a estratos sociais mais pobres ou a pessoas com menor nível de literacia” pode ser uma verdade, mas incompleta: as pessoas migravam à procura de uma vida melhor. Quem já estava em Lisboa (por exemplo) tinha outra educação e condições económicas, mas também tinha outras expressões (o que não quer dizer que outras fossem menos correctas).

      • No Nordeste brasileiro, principalmente nos Sertões, é muito comum, mas muito mesmo, o uso de “comer” como substantivo. “Fulana está preparando meu comer”. “Maria, cadê o comer”? Etc. etc. São milhões de pessoas canonizando o significado de comer.

  • E mais umas caneladas em Manuel Monteiro, não se entende esta obsessão. Parece que antes dele, era o nada. Não que concorde com ele, mas ainda se não justificasse as suas opções no livro… Justifica-as e bem, é a sua visão.

    • A obsessão, a existir, não é minha. Nem sequer o refiro no artigo (que não ataca ninguém em particular, mas sim uma certa atitude perante a língua) e, destes erros falsos todos, só dois, que me lembre, são atacados por ele: “saudades tuas” e “pelos vistos”. Não faço ideia se também considera erro os restantes exemplos que aqui dou.

      • São precisamente esses dois. E é obsessão, porque, aparentemente, só ele os refere. Ou seja, nem são situações por aí disseminadas. Enfim.

  • A imprensa brasileira decretou, já há alguns aninhos, que “correr risco de vida” é absurdo. E começou a usar “correr risco de morte”. Como alguém percebeu que ficava muito ridículo, adotou-se a forma “correr risco de morrer”. A meu ver, continua ridículo. E por falar em correr, tentou-se abolir, também, a expressão “correr atrás do prejuízo”. Argumenta-se que se deve correr atrás do lucro. Fazer o quê…

  • Caro Marcos:
    Gosto muito do seu blogue e sigo-o sempre que possível. Este comentário é apenas para esclarecer uma dúvida: no item «Para além disso» deste artigo o”porquê” das perguntas não deveria ser escrito separado (por quê)? Desde já obrigada.

  • A única coisa que me deixa de pé atrás no que respeita à “legalização” dos termos, é esse argumento de autoridade que entrega aos “bons” escritores uma superior razão para legitimar o que é pretenfido… O que seria um “bom” escritor e um “mau” escritor? 😉

    “Mas quando uma expressão é usada por bons escritores(…)”

    • Tem razão, é uma avaliação muito subjectiva. Mas existe: todos nós sabemos que há escritores com mais prestígio do que outros… Seja como for, neste caso, podemos substituir por “escritores com obras publicadas em editoras consagradas, cujas obras passam pelos olhos dum revisor”. 🙂

    • Graciliano Ramos – e tantos outros – caçaram expressões regionalistas e as inseriram em seus escritos. A língua é viva. Eu, mesmo, enviei à Academia Brasileira de Letras um pequeno dicionário que coletei em 40 anos percorrendo os sertões nordestinos, sobre o mundo rural. Verbetes que têm significado para aqueles que habitam os sertões, ou que trabalham com pecuária, agricultura, etc. Quase 3.000 verbetes. Claro que sequer tive resposta, mas espero que algum esperto acadêmico insira tais verbetes nos dicionários – um dia!

  • Boa noite, Marco.

    Votos de um bom ano novo.
    Tenho uma dúvida acerca de qual o termo a utilizar quando me refiro aos vídeos de música dos artistas de música, nacionais ou não, na nossa língua. Trata-se de “videoclipes”, “clipes de música”, “clipes musicais” ou nada disto?
    Grato pela ajuda.
    Abraço,
    Paulo

  • Ainda hoje recebi um email a criticar os pleonasmos acompanhado de uma grande lista.
    Acho que ainda não li nenhum artigo seu dedicado aos pleonasmos…

  • Fez-me bem ler… Entra a lingua e as linguagens. Obrigada.
    Uma saudação de Lyon
    rdc

  • Adorei o seu artigo, concordo consigo 100%. Muito bem escrito, com um humor subtil…
    Vou estar atenta às suas publicações.
    Obrigada

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