Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

História da baleia que engoliu um espanhol

Deixo aqui a história que deu o título ao livro A Baleia que Engoliu Um Espanhol, um romance de aventuras que me atrevi a escrever em 2017, com guerras, piratas, reis e amores perdidos – e um tesouro escondido em Peniche. O livro serviu ainda para brincar com as histórias da História de Portugal e com o triângulo (pouco) amoroso entre Portugal, Inglaterra e Espanha. No fundo, foi uma desculpa para matar a sede de contar histórias…

Este livro vai ganhar uma nova vida. Saiba mais neste grupo.

Naquele Verão, o meu avô levava-me muitas vezes até ao Largo de São Leonardo, na Atouguia da Baleia, para aprender a andar de bicicleta. Eu era um trapalhão. Num arremedo de pedalada mais confiante, caí. Tinha o joelho esfolado e lágrimas na cara.

– Levanta-te, vá, isso não foi nada.

Mas o susto fora grande e o meu avô decidiu que havíamos de descansar um pouco nos bancos da igreja.

Sentámo-nos cá bem atrás, e ele pediu-me para virar a cabeça: apontou-me para uma coluna de pedra retorcida do lado esquerdo da porta da igreja.

– Aquele é o osso de um dos heróis da nossa terra. Ninguém se lembra dele, mas eu conto-te a história, queres?

Fiquei muito curioso: um osso daquele tamanho? Seria de algum gigante? Na mansidão do choro na igreja quieta e vazia, com a cabeça a doer e os olhos inchados, olhei para os raios de sol a entrar nos vidros do altar e deixei-me embalar pela voz baixa do meu avô, a contar-me a incrível história da baleia que engoliu um espanhol.

O castelhano azarado

Tudo aconteceu pouco depois da Batalha de Aljubarrota. A boa da padeira, de patriotismo a toda a prova, não deixava de ser a mais desdentada, feia e assustadora heroína da história do mundo – quando apareceu de pá em riste para amassar inimigos, só posso imaginar o susto que não terá pregado aos pobres castelhanos, que ainda agora tinham levado porrada de três em pipa de portugueses e ingleses sem pudor nem compaixão. Pois à vista da senhora, os infelizes soldados a caminho de se transformarem em pão com chouriço tentaram fugir, mas uns quantos lá foram enfiados à pazada no forno. A padeira muito se ria e, entre dentes, ia insultando as pobres mães daqueles rapazes da Meseta.

Mas o mais azarado de todos os castelhanos foi o rapaz de Burgos que conseguiu fugir, ainda cheio da fuligem do forno – a velha enfiou-lhe lá dentro a cabeça, mas o estrangeiro deu um coice e fugiu. Fez mal: tendo em conta tudo o que lhe aconteceu a seguir, terminar os dias a crepitar no forno quente de Brites de Almeida teria sido uma morte santa.

Era um rapaz batido nestas coisas da vida e da guerra e dado a correr. E lá correu, correu, correu, para longe da terra de loucos em que se comiam castelhanos ao pequeno almoço. Tanto correu que foi parar a um pinhal à beira-mar.

Viveu por lá durante uns dias, matando coelhos e outros animais, acompanhados de boa salada de ervas daninhas.

Uma bela tarde, quando já se habituara a viver como selvagem e não saía palavra da sua boca há muitos dias, viu uma rapariga a passear e a colher flores e frutos silvestres. Não sei se seria do muito tempo que passou sem ver uma mulher ou se ela era mesmo linda, mas o certo é que a moça parecia uma deusa aos olhos do esfomeado castelhano. O pobre homem pôs o seu melhor ar de cordeiro transviado e apareceu num susto à miúda, que gritou à vista daquele lobo farrusco. O soldado lembrou-se a tempo de que não convinha dizer fosse o que fosse na sua língua, pois por aqueles lados ainda havia muita raiva contra gente da Meseta – e muita padeira de pá à espreita pronta a cozer castelhanos.

Fingindo-se de mudo, o rapaz pediu-lhe ajuda num suplício de gestos. A rapariga apiedou-se dele – facto a que não terá sido alheio o exagero com que ele pintou, numa careta trágica, a sua situação.

A portuguesa ficou enfeitiçada por aquele homem garboso e ferido que ali lhe aparecera como por encanto no meio da floresta – além de que era mudo, mas não desprovido de encantos. Lembremo-nos de que fora o único inimigo que, à força de muito músculo, conseguira fugir da pá de Brites de Almeida, a mais forte padeira de que há memória em todo o Portugal, capaz de amassar sem dó uns quantos soldados bem fornecidos de músculos e vontade de fugir.

Pois Maria – era o nome da cachopa que dera com o nosso fugitivo na floresta – levou-o até casa, onde o seu pai – conhecido nas redondezas como o João das Baleias – deu de comer ao mudo. A casa era ao pé da praia e dali que se virasse para sul veria as Berlengas e as tremendas falésias de Peniche, onde o mar ia bater como que a tentar derrubar as paredes daquele forte antigo.

Como perder a língua em Portugal

Naquele dia, quem passasse pela casa do João das Baleias veria um homem grande e mudo que recebia, enlevado, as atenções de Maria, a filha, enquanto o velho baleeiro olhava desconfiado para o magano que ali tinha arribado.

Ora, o mar, ali para os finais da tarde, começou a agitar-se – e à noite caiu sobre a costa e sobre aquele pobre casebre uma tempestade como nunca se vira – ou melhor, como nunca vira o castelhano, muito habituado ao épico calor da Meseta, mas pouco preparado para as agruras do mar. Olhava aterrorizado para a praia, onde se desfaziam num susto de espuma vagas imensas saídas da imaginação dum deus, entrecortadas por relâmpagos e trovões capazes de desfazer em pó a mais inabalável das fortalezas.

O nosso pobre soldado, que tinha perdido o pio para não denunciar a sua origem, a certa altura não resiste e de joelhos desata a rezar lá no seu linguajar, gritando para quem o quisesse ouvir ¡Madrecita de Dios, que me muero! – o que muito afligiu por instinto maternal (ou outro) a rapariga e caiu que nem um trovão no corpo do homem da casa, que não estava para dar guarida a castelhanos – mentirosos, ainda por cima – ali a abusar da ingenuidade da filha. Era mudo, o gajo? Ele já lhe dava o mudo!

Vai daí, enquanto gritava velhas palavras bem portuguesas que se ouviam por entre os trovões, pegou num facalhão, e para horror da filha, abriu à força a boca ao inimigo e cortou-lhe a língua. O pobre tentou libertar-se e, por fim, quando João das Baleias já tinha terminado a operação, saiu daquela casa aos tropeções do sangue que lhe saía às golfadas da boca, sem ver nada e quase de gatas.

Correu, tropeçou, correu mais um pouco. Dali a uns minutos, o sangue e a água misturavam-se na caruma da pequena clareira onde por fim se deitara, já convencido de que iria morrer ali num bosque ao pé do mar daquela terra de loucos, que tanto coziam castelhanos num forno cruel como lhes cortavam a língua sem dó. Ele nunca quisera vir para a guerra e só se alistara no exército do rei Juan porque, enfim, não tinha outra opção… Merecia aquele destino?

Abriu os olhos e, entre as lágrimas e o sangue que lhe cobriam a cara, viu os olhos preocupados de Maria. A portuguesa ajudou-o a levantar-se e a percorrer o caminho de volta a casa, um caminho demasiado longo para quem estava a esvair-se em sangue. Quando percebeu para onde a miúda o levava, o infeliz começou a tentar dizer qualquer coisa, mas faltava-lhe a língua. Queria voltar para trás, não queria ir para aquela casa onde se cortam línguas por dá cá aquela palha. Maria acalmou-o como pôde…

– Calma, calma, o meu pai não está em casa, agora.

Foi confessar-se ao prior.

A doce voz da filha do baleeiro

Nos dias seguintes, a rapariga tratou do soldado. Passava os dias entre mezinhas e rezas e, quando ele ficava mais calmo, contava baixinho histórias antigas de tesouros e amantes transviados.

Foi então que o castelhano ouviu pela primeira vez a história de Lúcio e de Miriam – os amantes sepultados na Ilha de Peniche há muitos séculos, junto a um tesouro inimaginável.

O homem ia ficando cada vez mais interessado, não só porque começava a recuperar as forças e a vontade de viver – apesar da mudez –, mas também porque histórias de tesouros despertam a curiosidade até no coração do mais infeliz dos homens, sobretudo se contadas pela boca duma bela rapariga sentada à beira da cama.

Então e a fúria do baleeiro amainara assim, sem mais? João das Baleias tinha voltado da confissão arrependido e com muito menos vontade de cortar línguas. O prior fizera-lhe ver que, sim, cortar um pedaço a um inimigo é passatempo consentâneo com o amor a Nosso Senhor, mas cortar a língua a um homem que tenta rezar já é motivo mais do que suficiente para ir parar ao fundo dos infernos.

Felizmente, ele – o prior – podia absolvê-lo desse pecado maior, o que faria já de seguida desde que João das Baleias prometesse que iria tratar bem do tal castelhano a partir daquele dia – que castelhano seria, mas também era filho de Deus – e que só se atreveria a atacá-lo de novo, como é de bom tom fazer a um inimigo, quando este tivesse recuperado da ferida na boca e lhe desse razões para tal.

João das Baleias, para dizer a verdade, não era pessoa para andar para ali a matar castelhanos como a Brites de Almeida. No entanto, também sabia que dar guarida aos inimigos da pátria não era coisa que o deixasse nas boas graças de Deus Nosso Senhor, que sempre esteve do lado dos Portugueses – e assim, dias depois, quando o homem já conseguia levantar-se e andar, embora sem língua, João das Baleias pediu à filha que despachasse o soldado com um pão para o caminho, dizendo-lhe como chegar a uma enseada onde se costumavam abrigar uns piratas mouros.

Com um certo ar paternal, pôs a mão no ombro do rapaz e disse-lhe, sem esperar resposta daquela boca sem língua:

– Já estás perdido, meu rapaz. Pode ser que essa cambada de loucos te ajude.

O nosso castelhano agradeceu e pirou-se, não sem antes olhar de novo para Maria, que era bem mais apetitosa do que o pedaço de pão que levava na mão – e que ele não deixou de considerar como uma piada à sua custa, pois João das Baleias bem sabia (como podia não saber?) que ele quase tinha morrido no forno donde aquele pão saíra. Talvez não fosse até descabido imaginar que o pão tivesse sido cozido ao lado dos esqueletos dos seus antigos companheiros de armas, castelhanos como ele, só um pouco mais lentos a fugir de velhas padeiras desdentadas.

Sim, Maria era apetitosa e, no fundo, inimiga, o que tornava lícito aos olhos de Deus tomá-la ali e agora se assim lhe aprouvesse – mas o pai, logo ao lado, certamente encontraria mais músculo para cortar se estivesse para aí virado – e o castelhano, a ferver de desejo, não teve remédio que não fosse aproveitar a generosidade daquela gente e fugir, deixando para trás a mulher mais bela que vira em toda a sua vida.

Enfim, até nos corações mais estragados pela guerra e pela vida, haverá um pingo de decência. Uns passos à frente, o castelhano voltou-se para trás e tentou agradecer, mas da boca saíram-lhe apenas uns vagos ruídos – esquecera-se de que naquela casa entrara calado e saía agora realmente mudo.

A história da pirata moura

Andou, andou, andou e encontrou o acampamento de mouros, que ficaram deliciados ao ver uma nova presa a cair ali que nem um patinho. Aproximaram-se do rapaz e revistaram-no com maus modos. Muito se riram com o aspecto farrusco e tremido do cristão danado – e mais se riram quando o ouviram a falar sem língua.

O homem balbuciava umas palavras, apontava, explicava-se, tentava convencer aqueles mouros de que não se importava de rezar a outro deus, desde que o tratassem melhor que os brutos das redondezas. O problema é que sem língua não há homem que consiga dizer «Alá» – e, assim, o que lhe saía da boca era um «aaah» sem nexo.

A verdade é que os mouros andavam à míngua de braços fortes, com ou sem língua, e lá o aceitaram naquela república de piratas.

Durante os primeiros dias que por ali viveu, o castelhano esforçou-se por ser útil e fez parte duma ou outra expedição para despedaçar barcos e aldeias portuguesas.

Aquela pandilha mourisca era chefiada por uma mulher chamada Fátima.

Poucos dias depois de o nosso castelhano ter arribado ao acampamento, Fátima chamou-o e disse-lhe, passando-lhe a mão pela cara num gesto de estranho carinho:

– Se queres mesmo fazer parte da minha tripulação, tens de ultrapassar um desafio…

O homem ficou a olhar, intrigado com aquela estranha figura de mulher vestida de pirata.

Ela sorriu e apontou para a Ilha de Peniche, ao sul, escondida na neblina:

– Vou contar-te uma história. Naquela ilha esconde-se um velho tesouro…

* * *

E Fátima contou então que, dois séculos antes, quando os seus antepassados ainda eram senhores daquelas terras, apareceu por ali um homem a avisar a população que vinham lá os soldados de Ibn-Arrik.

Todos se apressaram a fugir para o interior, para longe da costa donde viriam esses cristãos sedentos de sangue e saque.

Vivia por ali um velho poeta chamado Ibn-Quzman – quando soube que vinham lá os infiéis, em vez de acompanhar a fuga, saltou para dentro dum pequeno batel e remou até Peniche, que distava da costa uns oitocentos passos.

Nessa noite, quem olhasse para a ilha veria chamas e ouviria estranhos ruídos. Ibn-Quzman pegou fogo às entradas dum velho labirinto onde, muitos séculos antes, um romano escondera um tesouro.

No dia seguinte, Ibn-Quzman voltou ao continente e pôs-se a cavalgar durante dias. No alforge, levava um rolo onde se contava a história do Tesouro de Saturno.

Poucos dias depois da partida de Ibn-Quzman, chegavam por fim as tropas de Ibn-Arrik, que os cristãos chamavam Afonso Henriques. O rei dos portugueses viria a oferecer aquelas terras a Guilherme de Licorni, um cruzado franco – que nunca chegou a ouvir falar do tesouro.

A pirata e o soldado passeavam agora na areia duma praia protegida por altas arribas.

– Vou contar-te um segredo…

O castelhano olhou para ela e fez uma careta de curiosidade.

– Sou pirata, é bem verdade. Mas sou também princesa. Sou filha de Maomé V, o Afortunado, sultão de Granada. Não faças essa cara de admiração. A vida dá muitas voltas.

Fátima contou então como tinha crescido em Granada, entre amenos jardins, frescura de fontes e pomares a perder de vista. Lembrava-se de brincar com os irmãos entre leões de pedra. Aquelas crianças eram os príncipes da dinastia Nasrida, a família soberana de Granada, o último reino muçulmano da península.

Um dia, numa das bibliotecas do Alhambra, Fátima encontrou um velho escriba que tinha nas mãos o rolo trazido para ali de muito longe e há muito tempo por Ibn-Quzman. O velho explicou à princesa que andava a traduzir para árabe aquela história antiga. Era uma história de viagens, lutas e aventuras e havia também um tesouro escondido numa ilha para lá do sol posto.

A pequena Fátima disse-lhe então:

– Quero aprender a ler.

O escriba riu-se, mas a princesa insistiu – e assim, nas tardes quentes de Granada, Fátima aprendeu a decifrar as histórias escondidas nas bibliotecas do reino.

Tempos depois, já ela lia a história do tesouro, sentada debaixo duma amendoeira, enquanto os irmãos brincavam aos piratas ali por perto. A história tinha sido escrita por um antigo escravo romano chamado Dionísio. Fátima lia aquelas palavras e, presa no paraíso, sonhava com aventuras, viagens, tesouros…

Quando já tinha quinze anos, pensou em ir em busca do tesouro – argumentava com o pai que aquelas riquezas pertenciam, por direito, aos seguidores do Profeta.

O sultão ria-se, passava a mão pelos longos cabelos da filha e dizia:

– Não penses nisso, Fátima. Oxalá um dia voltemos a governar aquelas terras. Quando chegar esse dia, prometo que o tesouro será teu.

Fátima não ia em oxalás. Os irmãos seriam soberanos – e ela? Ficaria ali para sempre, presa no paraíso?

Não!

Dias depois, saiu sem dizer nada a ninguém e foi à aventura.

Assim que explicou como acabara chefe dum bando de piratas, Fátima contou ao castelhano a história do tesouro que lera no manuscrito de Dionísio. Falou sem parar durante horas. É verdade: a princesa tinha saudades de conversar. Quase todos aqueles piratas eram gente bruta, pouco habituada a conversas em jardins ou à beira-mar. Não que o nosso castelhano não fosse também um pouco rude, mas, com o golpe de faca do baleeiro, ganhara uma capacidade infinita para ouvir os outros sem interrupções – e Fátima, diga-se, achava aquele homem bem mais agradável que os piratas ao seu comando.

Foi assim que, nesse dia, enquanto o sol se punha para lá das Berlengas, Fátima contou as aventuras do tesouro encantado que havia naquelas ilhas.

* * *

A história chegou ao fim e Fátima não teve outro remédio que não fosse explicar ao belo castelhano qual era o desafio – os outros piratas não iriam aceitar que aquele mancebo fosse poupado ao teste.

Teria de entrar no labirinto, procurar o tesouro, roubar uma ou duas peças e trazê-las até ali. Seria o pagamento pela admissão naquele distinto clube de piratas.

O nosso castelhano pareceu aliviado e disse que sim com a cabeça cheio de força e vontade. A mulher passou uma mão terna pela face dele e disse:

– Meu rapaz, o mais provável é que morras a tentar. Se fosse fácil, nós iríamos lá e traríamos o tesouro inteiro hoje mesmo. Mas aqueles são túneis traiçoeiros, cheios de armadilhas e feitiços. Já lá deixámos dezenas de infiéis e só voltaram três. Ficarei a rezar a Alá para que te ilumine. Se regressares… Quem sabe, talvez venhas a ser o pirata preferido da filha do sultão.

E piscou-lhe o olho, dando-lhe a mão.

Um labirinto sem fim

Na manhã seguinte, o nosso aprendiz de pirata remou, sozinho, até à ilha de Peniche. Por fim, encontrou a pequena enseada que Fátima lhe indicara. Arrastou o batel para a praia e aventurou-se na gruta que por ali havia.

Estava no labirinto que o romano construíra muito séculos antes. Avançou sem medo e depressa teve de escolher entre esquerda e direita – e assim foi escolhendo ao calhar da vontade em várias bifurcações. Não tinha maneira de saber o caminho certo, mais valia seguir o capricho de cada momento.

A escuridão seria absoluta não fossem uns pequenos raios de sol que escapavam à negrura das rochas por entre umas brechas no tecto, lá muito em cima. Ao andar, deu com grutas gigantescas e outras pequenas salas apertadas. Os passos ecoavam pelas galerias daquele labirinto antigo, ali escavado para dar guarida a um velho casal de gente feliz e a um tesouro magnífico.

A certa altura, encontrou uma porta e, por trás, uma sala construída na rocha. No centro da sala, viu um pequeno altar de pedra sem nada, com um esqueleto ajoelhado à sua frente de coroa na cabeça. Do tecto, entrava um foco de luz que caía precisamente na coroa brilhante daquele esqueleto.

Notou que por baixo do altar havia dois sepulcros, antigos, onde se podiam ler dois nomes: LVCIO e MIRIAM.

E o tesouro, onde estaria?

Ao fundo da sala, encontrou mais uma porta.

A partir dali, o labirinto era feito de túneis mais baixos e nenhuma luz. O castelhano não dava um passo sem se enredar em teias de aranha e tropeçou várias vezes nos esqueletos dos pobres coitados – pensou – que os mouros tinham deixado ali dentro à procura do tesouro.

Sentou-se a descansar em cima duma caveira e a pensar no que podia fazer. O mais provável era não sair dali vivo. Mais valia morrer tendo visto esse tal tesouro. Levantou-se e avançou…

Demorou, mas deu com uma sala onde os raios de sol iluminavam uma arca aberta e onde via o brilho do ouro de velhas moedas com a efígie de Augusto, Imperador de Roma. Mesmo ali ao lado, três ânforas despejavam pelo chão pedras preciosas que cintilavam no escuro. Encontrou ainda um pequeno altar encostado a uma parede, onde se via em mosaicos trabalhados a figura de Saturno. E, incrustado na parede, como se estivesse na mão do deus, viu um diamante do tamanho duma cabeça de boi.

Puxou o diamante, que nem se moveu. Continuou a puxar, a empurrá-lo para um lado e para o outro. Pôs os dois pés na parede, enquanto tentava trazer até si aquela pedra.

Nada.

Deu um pontapé frustrado na parede e foi então que o diamante lhe caiu em cima dum pé, com um baque. Foi por isso que saiu da sala do tesouro a coxear. Na mão, levava o maior diamante da Terra.

Agora bastava encontrar a saída. Mas naquela escuridão, estava cego (para além de mudo e coxo). Será que acabaria como um daqueles esqueletos deitados nos túneis?

A praia ao fundo do túnel

Aquele era, apesar de tudo, um dia de sorte para o mais azarado dos homens. Mais umas voltas e uns tropeções e conseguiu por fim ver a luz da praia onde deixara o barco.

A custo, enfiou o diamante, pesadíssimo, dentro do barco. Foi difícil, com o cansaço, mas a emoção de ter sobrevivido e o alívio de ver a luz do sol a bater-lhe na cara deram-lhe forças para empurrar o batel até à água.

Começou a remar. Estava vivo! Passara a prova! Ia ser pirata.

E remou, remou, até deixar atrás de si a ilha de Peniche. Sentia-se o mais sortudo dos homens. Desde o desaguisado com a padeira chalupa, conhecera a mulher mais linda de Portugal e de Espanha. Fora acolhido por piratas e mudara de deus. Agora encontrara um tesouro e seria recebido em festa por Fátima, a filha do Sultão.

Reparou então numa outra ilha, no horizonte, que lhe parecia bem mais alta e bem maior. Não era, mas assim parecia aos seus olhos delirantes. Numa pequena baía de águas cristalinas, pareceu-lhe entrever um palácio ou um convento – ou talvez um forte.

Pensou então: era o único homem vivo que sabia onde estava o tesouro. Os piratas estavam longe. Aquela ilha paradisíaca estava ali tão perto. Se conseguisse lá chegar, encontraria um porto de abrigo e teria tempo de pensar como fugir aos piratas.

Decidiu-se: para as malvas com a promessa que fizera à chefe dos piratas! Eles eram inimigos da sua Santa Fé, não lhes devia nada. Bem no fundo do seu coração, não renegara a fé cristã. E, pensou o castelhano, Deus Nosso Senhor sabe que, por vezes, é preciso dizer da boca para fora o que não se sente. Mas a sua obrigação era fugir dos infiéis. Ainda por cima, tinha aquele diamante que bem valia o risco da fuga.

Apontou à ilha e remou furiosamente. Foi então que sentiu uma estranha onda naquele mar calmo do mês de Agosto. O que seria aquilo?

Parou de remar e olhou em volta.

Passou uma sombra por baixo de água. O nosso amigo viu então abrir-se à sua frente, vinda das profundezas do oceano, a boca duma baleia gigantesca, que, numa dentada, comeu barco, tesouro e castelhano.

O soldado que sobrevivera à espada de Nun’Álvares, ao forno de Brites de Almeida, à fúria de piratas desaparecia agora na boca desta magnífica baleia.

O osso do gigante

A história não acaba aqui: é sabido que a digestão de castelhanos não é fácil e o animal ficou um pouco maldisposto, acabando por dar à costa, onde foi caçado por – quem mais? – João das Baleias, que vivia na zona da Ribeira d’Atouguia.

Mal sabia ele que aquela baleia comera o castelhano que encontrara a sua filha, um daqueles dias, na floresta.

Ao abrir a barriga ao mamífero, João das Baleias deu graças a Deus: ali estava o diamante.

Ao contrário do que pensava a pirata, havia por aquela zona muitos pescadores e baleeiros que conheciam as entranhas das ilhas. Todos eles respeitavam o tesouro e sabiam que não lhe podiam tocar – se alguém dali tirasse alguma pedra preciosa, por mísera que fosse, ou pusesse no bolso uma moeda de ouro, ficariam sem peixe por anos e anos. Eram assim os feitiços antigos: inexplicáveis e implacáveis.

João das Baleias foi ter com o prior e contou a história da baleia que encontrara o diamante do Tesouro de Saturno.

– Lá vens tu com essas histórias pagãs!

– Não são histórias! O tesouro existe! Quer ver o diamante que encontrei na barriga do bicho?

O padre interessou-se por aquela pedra e perguntou-lhe se não a queria oferecer à igreja, que faria muito bom uso de tal pedregulho, para glória eterna de Deus Nosso Senhor.

– Não: a pedra tem de ser devolvida ao labirinto.

O Tesouro de Saturno tem de repousar para todo o sempre naquela ilha. Sempre assim foi e assim terá de continuar a ser para descanso de Deus e de nosso senhor el-rei D. João I, Mestre de Avis. E esta baleia, senhor prior, é uma baleia santa e patriota, que merece ser enterrada na igreja.

Ora, uma baleia inteira enterrada num templo não era coisa que o pároco apreciasse. Após duras negociações com o baleeiro, o prior aceitou uma solução de compromisso – e dias depois a população, em procissão, foi deixar um dos venerandos ossos da baleia naquela igreja.

O osso ainda lá está.

 

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Muito bom “cuento”. Como as historias da Velha Moura. Na velha tradição nossa. Agora revivida por seu talento de escritor. Parabéns!

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